, por Luiz Ricardo Leitão
Quem é você que não sabe o que diz... Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
(Noel Rosa, Palpite Infeliz, 1936)
O recente episódio protagonizado pelo emérito compositor Martinho da Vila (presidente de honra da Unidos de Vila Isabel) e pela diretoria da sua escola de samba reacendeu a discussão sobre o implacável processo de mercantilização e espetacularização a que vem sendo submetida a maior festa popular brasileira ao longo das últimas décadas. A fim de prestigiar a escolha e despertar o interesse do público e da mídia, os cartolas da escola o convidaram a participar da disputa do samba-enredo/ 2006, mas depois decidiram cortar a música composta por Martinho (autor de enredos geniais como Sonho de um sonho e Pra tudo se acabar na quarta-feira) e Luiz Carlos da Vila (co-autor de Kizomba, a festa da raça, com o qual a Vila foi campeã em 1988), sem dar a mínima satisfação aos dois sambistas. Magoado com a agremiação, cujo badalado enredo Soy loco por ti, América - a Vila canta a latinidade foi concebido pelo artista, Martinho resolveu afastar-se do Rio em 2006, preferindo viajar para Pernambuco e animar os festejos em Recife e Jaboatão, onde ainda é possível ver maracatu, maculelê, vaquejada, fandangos e marujada, manifestações praticamente ignoradas pelos nossos meios de comunicação.
Entrevistado pelos jornais, Martinho mediu bem as palavras, mas não poupou críticas à nova fisionomia imposta pela sociedade do espetáculo ao desfile das escolas de samba cariocas, que, ao lado do frevo pernambucano e dos gêneros afro-baianos, foram convertidos nos maiores ícones do carnaval em Pindorama. Para ele, a festa mudou completamente: quando começou a desfilar, nos anos 1960, as escolas tinham em média 400 componentes; hoje, só a bateria possui 400 ritmistas e algumas agremiações chegam a passar com 5.000 pessoas na Sapucaí, muitas delas inteiramente alheias à Escola, comprando fantasia pela internet e desembarcando no Sambódromo às vésperas do evento, para curtir sua fugaz “celebridade” por algumas centenas de dólares ou reais. O sambista da terra de Noel sintetiza a alienação reinante com uma frase de efeito: - Silas de Oliveira não ganharia hoje uma disputa de samba-enredo.
A pesquisadora Lygia Santos, fi lha de um patriarca do samba (o inesquecível Donga, que não apenas compôs, como também lutou em defesa da cidadania negra), é ainda mais contundente em sua análise: “Acho que o que está acontecendo com Martinho e as escolas de samba é o resultado dessa loucura avassaladora da classe dominante em busca de dinheiro, fama e diversão barata. Ninguém tem amor a escola alguma.”
Superescolas de Samba S/A superalegorias escondendo gente bamba,que covardia
(Beto Sem Braço & Aluísio Machado, Bumbum paticumbum prugurundum, Império Serrano/1982)
A gênese desse voraz processo de metamorfose do carnaval remonta aos anos de chumbo da ditadura militar. Se, por um lado, o desfile sofreu até o duro controle ideológico dos aparelhos de censura e repressão, com a expressa recomendação de que os únicos temas abordados deveriam ser os de fundo cívico ou histórico, por outro, com a consolidação dos meios de comunicação de massa e, em especial, da televisão - que, a partir da criação de um sistema nacional de telecomunicações (Embratel), pôde atingir 98% do nosso território, fator decisivo para o crescimento da Rede Globo no período -, as classes dominantes investiriam gradualmente nesse novo “produto”, até transformá-lo em sofisticada mercadoria visual, cuja exportação lhes traria gordos dividendos anuais.
Há distintas etapas nessa mudança, todas elas marcadas pelos obscuros acordos firmados entre o poder público e os grandes grupos empresariais de turismo e comunicação de massas. Nos anos 70, ainda em pleno regime de exceção, eram notórias as conexões entre os políticos da ditadura e os “banqueiros” do jogo do bicho, principais “patronos” ou dirigentes das escolas, quase todos eles ativos cabos eleitorais da Arena e, posteriormente, do PDS. A mulher e o filho do General Figueiredo, por exemplo, mantinham estreitas relações com Anísio Abraão David, homem forte da Beija-Flor de Nilópolis, município da Baixada Fluminense governado durante décadas pela família David. Coincidência ou não, ao longo desse namoro a escola ganharia seis desfiles no Grupo Especial do carnaval carioca, todos eles sob a batuta de Joãosinho Trinta, o polêmico e talentoso maranhense que iniciara sua carreira nos anos 60 como auxiliar de mestre Fernando Pamplona no Salgueiro (onde criou enredos como A visita do rei de França ao Maranhão) e depois viria a ser o grande maestro da escola de Nilópolis. Embora costume dizer, por cinismo ou conveniência, que ele “não gostava da ditadura”, o carnavalesco desenvolveu temas laudatórios ao regime, conforme ilustra, em 1974, o enredo O Grande Decênio, óbvia exaltação das conquistas dos governos tecnocráticos dos militares após 1964. Joãosinho iria consagrar na avenida a “estética do luxo” e, em resposta às críticas que a esquerda lhe formulava, cunhou a célebre frase segundo a qual “quem gosta de miséria é intelectual”...
Em 1983, após a fragorosa derrota do regime nas eleições estaduais de 82, a ditadura vivia seus últimos suspiros, mas o espetáculo, decerto, não iria parar. Leonel Brizola, eleito governador do Rio de forma surpreendente (superando, inclusive, na apuração dos votos o esquema fraudulento armado pela direita em favor de Moreira Franco, candidato do PDS, episódio que ficou conhecido como “o escândalo do Proconsult”, convocou Darcy Ribeiro para ocupar-se do evento e este delegou a Oscar Niemeyer a tarefa de criar, em nove meses, uma nova estrutura para a pista de desfiles. Surgia, assim, o singular “Sambódromo”, um monumental palco de concreto capaz de abrigar 70 mil pessoas, o que representaria, nos anos seguintes, o progressivo abandono do carnaval de rua pelos governos municipal e estadual (com o esvaziamento dos desfiles de blocos e sociedades carnavalescas em outros pontos da cidade, como a Avenida Rio Branco, no Centro, ou os bairros de Vila Isabel e Madureira, cujos desfiles, sempre gratuitos, atraíam dezenas de milhares de foliões).
O samba possuía enfim o mesmo status do futebol ou de outros espetáculos de massa. A cultura popular, fosse ela um plástico jogo corporal com o qual as crianças se divertem na rua (sonhando ou não com as glórias de Pelé, Romário e Ronaldinho) ou uma expressão musical e coreográfica que condensa em uma festa mágica séculos de ritos, cantos e danças que atravessaram três continentes, devia transformar- se em vedete da sociedade espetacular. Para tanto, fabulosos contratos comerciais passariam a ser firmados entre a Prefeitura, a Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) e as emissoras de televisão. Era de se supor que estas, por decisão do poder público, não detivessem qualquer monopólio sobre a transmissão; porém, desde os anos 1990, resumem-se a uma única empresa: a onipotente Rede Globo, que hoje organiza o desfile da maneira mais comercial possível, reunindo 14 escolas no Grupo Especial e dividindo o desfile em dois dias (domingo e segunda-feira). O esquema, aliás, também já se estendeu a São Paulo, onde o “espetáculo” se realiza em duas noites (sexta e sábado), preenchendo inteiramente a grade da programação “globeleza”. Como cantava, com rara lucidez, o samba do Império Serrano em 1982, surgia enfi m a era das “Superescolas de Samba S/A”, a partir da qual muita gente bamba seria escondida pela covardia do monopólio midiático e empresarial que regia a “festa”.
Sem preconceito ou mania de passado
sem querer ficar do lado de quem não quer navegar
Faça como o velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar
(Paulinho da Viola, Argumento, 1975)
A bem da verdade, a industrialização da cultura não é prerrogativa da segunda metade do século 20. Ela retrocede ao século anterior, quando Edison inventa o fonógrafo (1877) e os irmãos Lumière projetam o seu primeiro fi lme (1895). Nasciam na Europa e nos EUA as empresas fonográficas e cinematográficas: a britânica The Gramophone Company e a alemã Deutsche Gramophon são fundadas em 1898 e a estadunidense Victor Talking Machine se constitui em 1901. A companhia inglesa, por sua vez, logra instalar em 1908 uma fábrica em Calcutá e estúdios em Bombaim, os quais exportam para a África Oriental, estimulando precocemente a indústria cultural indiana, cuja produção cinematográfica supera há muito as cifras de Hollywood (os indianos produzem 900 fi lmes por ano, em sua maioria melodramas de larga difusão na Ásia e na Rússia). O prelúdio da indústria cultural, porém, situa-se entre 1830 e 1840, quando surge o poderoso “império dos sentimentos” na imprensa européia. Mesclando as tradições da literatura popular da Espanha, França e Inglaterra, o romancefolhetim foi o primeiro produto de exportação da moderna “cultura de massas”.
O negócio prospera. Depois da era das ferrovias e do império do automóvel, o capital patrocina a “indústria da informação”, que em 1960 já respondia por 29% do PIB estadunidense. Nas últimas décadas do século XX, quando o Estado do Bem-Estar Social cede passagem à globalização neoliberal, testemunhamos a avassaladora eclosão da “sociedade do espetáculo”, essa esquizofrenia pós-moderna por meio da qual as manifestações legítimas de um povo são convertidas em uma artificial representação midiática. Após o vertiginoso processo de urbanização do planeta, nada escapa a esse fenômeno transnacional, desde o megaespetáculo do futebol (o contrato firmado entre a Fifa e as redes de TV para a transmissão das duas últimas Copas alcançou a incrível marca de 2,3 bilhões de dólares) até uma das mais exuberantes festas populares que o mundo conhece - o carnaval brasileiro.
Apesar da adversa conjuntura que a era neoliberal iria instaurar no país a partir da eleição de Fernando Collor de Mello em 1989, não convém perder o otimismo acerca do caráter contraditório da indústria cultural, por mais que ela se empenhe em pasteurizar todas as produções mais nobres do espírito humano, aniquilandoas por meio da reprodução tecnológica e o consumo de massas da “aldeia global”. Como bem advertiu Marx, os fenômenos humanos são uma “síntese de múltiplas determinações”. A própria Vila Isabel, em 1988, sem dispor de nenhum “padrinho” ou patrocinador, ganhou o título do Grupo Especial prestando uma homenagem emocionante ao centenário da abolição da escravatura no Brasil. Martinho da Vila, o criador do enredo, convidou grupos culturais de Angola e Moçambique, celebrando com o desfile uma dionisíaca festa de identidade afro-brasileira. Como eles conseguiram superar o luxo e a riqueza das grandes escolas? Bem, na América Latina, “ou inventamos, ou fracassamos”, preconizava o sábio Simón Rodríguez, mestre do libertador Bolívar. Diante das câmeras de TV, as fantasias e carros alegóricos adornados de ráfia e outras fibras vegetais obtiveram um efeito originalíssimo e superimpactante. Um reino virtual... porém deste mundo. Além disso, era um baile de negros, contando a toda sua gente uma história de opressão secular e eterna luta em prol da liberdade.
Agora mesmo, em 2006, a grande novidade do carnaval tem sido os “ensaios técnicos” das escolas na Sapucaí, de sexta a domingo, em que as agremiações, livres da obrigação de competir, desfilam à vontade na pista, com as alas da comunidade caprichando em suas coreografias e os ritmistas deleitando o público com suas acrobacias musicais. Como a entrada é franca (durante o carnaval, o ingresso de arquibancada custa em média R$ 150,00), cerca de 40 mil pessoas lotam o Sambódromo a cada noite, fazendo dos ensaios uma das mais democráticas formas de lazer da cidade. Contente com a iniciativa, Martinho da Vila sugere que, a partir do próximo ano, os componentes coloquem um abre-alas com o nome da escola à frente do cortejo e vistam- se com fantasias bem leves, “nas cores dos pavilhões, com os mestres-salas e as porta-bandeiras devidamente fantasiados”. Já que não há concurso oficial, nem profusão de câmeras de TV, o desfile fica diferente, bem distante do caráter mercantil e espetacular do domingo e segunda de carnaval. Martinho lembra ainda que, sem a sonorização da avenida, os foliões “têm de levar o samba no gogó”, o que termina por conferir ao evento uma autenticidade há muito perdida.
Sinais de vida no planeta samba. Mais uma vez, o velho Marx tinha razão: tudo que é sólido desmancha no ar... Parece que os sambistas cariocas, pouco a pouco, somam-se a todos aqueles brasileiros indignados com a promiscuidade a que as elites submeteram as mais genuínas expressões culturais do nosso povo. Quem apostou na morte do carnaval, por sua vez, vai pagar caro por isso. Como diz a canção, façamos como o velho marinheiro, “que durante o nevoeiro leva o barco devagar”: apesar dos pesares, saberemos resistir a mais um palpite infeliz do capital.
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino- Americana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba)
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