Os profundos laços entre os radiodifusores brasileiros e venezuelanos
Em ato em São Paulo, presidente da RCTV, Marcel Granier, nega golpe na Venezuela e critica o governo Chávez sob os aplausos de empresários brasileiros. Lá, como aqui, a defesa da liberdade de expressão virou retórica dos que mais a cerceiam.
Bia Barbosa*
Elites costumam se relacionar bem com elites, independente de barreiras geográficas ou lingüísticas. Nesta quinta-feira (28/6), esta sinergia ficou explícita em um encontro promovido em São Paulo entre o presidente da Rádio Caracas Television (RCTV), Marcel Granier, e os radiodifusores brasileiros. Numa das pomposas salas do Hotel Meliá Monfarrej, na Alameda Santos, com a promoção da Revista Imprensa – acreditem... –, as principais associações de empresas de comunicação do país e a Associação Internacional de Radiodifusão (AIR) declararam seu apoio explícito à RCTV, que não teve sua concessão renovada pelo governo venezuelano no último dia 27 de maio.
O “Ato em Defesa da Liberdade de Expressão” de liberdade não teve nada. Do lado de fora, impedidos de entrar no salão, ficaram manifestantes do movimento pela democratização da comunicação e do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Com nariz de palhaço e vendas na boca, eles empunharam cartazes que diziam: “concessão é pública”, “liberdade de imprensa é diferente de liberdade de empresa”, “liberdade de expressão para todos” e “Globo e RCTV: tudo a ver”. Do lado de dentro, além da imprensa, duas dezenas de executivos e entidades patronais que historicamente defendem o oligopólio privado da comunicação Brasil.
Em mundos apartados, protegido pela segurança da cadeia Meliá, Marcel Granier se sentiu à vontade em seu discurso. Falou depois o editor da Revista Imprensa, Sinval de Itacarambi Leão, que indiretamente tentou justificar o envolvimento do veículo no evento ao dizer que a revista tem vocação plural e dialoga com profissionais, empresas e sindicatos. Depois falou Héctor Oscar Amengual, diretor geral da AIR, que num discurso emocionado disse que os radiodifusores privados, livres e independentes estão “unidos e unânimes” em sua opinião em apoio e solidariedade à emissora venezuelana.
“Sentimos a tristeza e as lágrimas dos trabalhadores da RCTV, feridos em seu orgulho de pertencer a um meio de comunicação que por mais de 53 anos obteve a preferência de milhões de venezuelanos, aqueles que são impedidos de exercer sua liberdade de expressão”, declarou. “Não vamos medir esforços até que a RCTV volte ao ar, ao ar da Venezuela, ao ar da liberdade, ao ar que respiramos todos da AIR”, concluiu.
Depois, tapete vermelho ao senhor Granier, que iniciou sua apresentação com trechos em vídeo de declarações de Chávez que, na sua visão, caracterizam a conformação, na Venezuela, da ausência de um Estado Democrático de Direito. Ao fundo, uma música de suspense, para ajudar no clima. Só ficaram de fora as imagens – já excessivamente veiculadas pela imprensa brasileira – dos funcionários da RCTV chorando ao cantar o hino nacional minutos antes da TV sair fora do ar.
Granier contextualizou o processo de não renovação da concessão da RCTV, explicou as mudanças feitas nos últimos anos na legislação para o setor e então abriu fogo contra o regime chavista. Disse que há sete anos o governo venezuelano descumpre o que estabelece a regulamentação do setor, ao não promover as adequações necessárias a todas as emissoras de rádio e televisão depois das alterações na lei. “A situação de mais de 150 concessões está pendente”, disse, ao afirmar que somente a RCTV foi responsabilizada por isso.
Acusou o Poder Judiciário de não atuar de forma independente do Executivo. Segundo Granier, a Justiça da Venezuela entregou as instalações de transmissão da emissora privada à Comissão Nacional de Telecomunicações, ordenando sua ocupação militar, antes de julgar em definitivo o recurso interposto pela RCTV contra a decisão do governo. Até hoje não houve um posicionamento do Tribunal Supremo de Justiça sobre o caso.
“No dia 28 de dezembro o presidente anunciou o fechamento (sic) da RCTV, mas durante três meses não houve nenhum ato administrativo, nenhum documento, do qual pudéssemos apelar nos tribunais”, reclamou Granier. O empresário também pintou um quadro sombrio da situação na Venezuela, ao relacionar o que entende por “investidas do governo contra as liberdades e garantias fundamentais em todos os planos”. Palavras como “secreta”, “clandestina”, “ilegal” foram abundantes.
Acusou Chávez de mover uma campanha contra as empresas privadas, os sindicatos, as instituições de ensino privado e os grêmios profissionais e de reprimir com violência policial os protestos desses setores. Chegou a dizer que “muitos estudantes foram presos, apanharam, foram torturados” e que o governo convocou a população a “realizar ações vandálicas” contra os jornalistas independentes. Por fim, informou das denúncias feitas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra essas agressões.
“Vazio de poder”
O momento mais interessante veio depois, quando teve início uma coletiva de imprensa com Garnier. O repórter da TV Globo, José Roberto Burnier, deu seu testemunho do totalitarismo de Chávez. “É visível, e pude ver isso quando era correspondente em Buenos Aires, que o presidente Hugo Chávez, desde 2005 ou um pouco antes, vinha tomando medidas para controlar o conteúdo das emissoras de TV e dos jornais”, disse. Levantou a bola para Garnier cortar, na mais profunda sintonia e "independência jornalística".
O presidente da RCTV elencou então um rol de ações para o controle das comunicações, a começar por uma lei que regula conteúdos veiculados na televisão. “Os programas são classificados de acordo com a linguagem, o grau de violência, de sexo exibido. São definições muito vagas e o funcionário do governo responsável pela classificação pode sancionar qualquer programa que julgar conveniente. O resultado tem levado a uma auto-censura cada vez maior dos meios de comunicação”, afirmou. Qualquer semelhança com a crítica feroz que a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) vem fazendo contra a classificação indicativa do Ministério na Justiça no Brasil não é mera coincidência.
Chávez também retribuiria, em forma de publicidade governamental, os veículos que desenvolvem linha editorial favorável a seu governo. Mas disso as emissoras privadas no Brasil não podem se queixar, já que abocanham a imensa maioria dos recursos de comunicação do governo em função dos chamados critérios de audiência e alcance dos veículos.
O ponto alto da coletiva foi quando Granier – talvez inspirado no que ocorreu quando os militares brasileiros derrubaram João Goulart do poder – negou que tenha havido um golpe na Venezuela. Segundo ele, o que houve foi um “vazio de poder”, o mesmo dito pelo presidente do Congresso Nacional por aqui em 1964. Ter planejado o golpe e feito uma cobertura altamente favorável aos que tiraram Chávez do poder são as principais justificativas do governo venezuelano para não ter renovado a concessão da RCTV. Para seu presidente, no entanto, este golpe nunca ocorreu. “O tema do golpe é algo que o governo coloca porque não tem argumentos jurídicos”, disse Granier. “Em abril de 2002, depois de protestos que reuniram mais de um milhão de pessoas em Caracas, o chefe do Estado Maior do presidente se apresenta à televisão e diz que, em função de graves acontecimentos, o alto comando militar pediu a renúncia ao presidente e ele aceitou. Nunca o presidente ou os militares nos explicaram qual era a razão da renúncia”, explicou Granier.
Faltou dizer, no entanto, por que a RCTV não se preocupou em perguntar essa razão, antes de anunciar que Chávez havia abandonado do país – uma mentira – e dar início, ao vivo, às comemorações pelo golpe. Talvez disso Granier não se lembre, como parece não se lembrar das reuniões que aconteceram em sua casa e que planejaram o golpe de 2002. “Exerço o jornalismo há 50 anos. Nunca, neste período, ninguém ouviu uma única frase minha ou uma atitude minha de defesa de um golpe de estado, em nenhuma circunstância”, garantiu.
A imprensa brasileira também se esqueceu de questionar a declaração minimamente “estranha” de Granier nos jornais televisivos desta quinta.
Ao ser interrogado sobre o histórico de sanções sofridas pela emissora ao longo de sua história por abusos cometidos na programação e sobre o resultado do processo que correu na Justiça venezuelana que concluiu que a RCTV infringiu a constituição nacional, a lei orgânica das crianças e adolescentes, a lei orgânica das telecomunicações e a lei de responsabilidade social do rádio e da TV, Granier respondeu: “Não há nenhum país em que as relações entre a imprensa e o poder sejam de absoluta normalidade. Anormal seria que, em 53 anos, nunca tivéssemos tido problemas com nenhum governo”.
O encerramento da coletiva foi esclarecedor – para aqueles que ainda não conheciam as origens e a ideologia do dirigente principal da RCTV. “Me preocupa muito o discurso que o presidente Chávez tem adotado, que fala de uma guerra que ninguém reconhece, que está em sua mente, que supostamente temos com os Estados Unidos. E que nos obriga a ser o principal comprador de armamento da América. Compramos mais armas que o Irã. Ninguém entende porque cada venezuelano tem que ter um fuzil. Entenderíamos que o presidente propusesse que cada venezuelano tivesse um computador ou acesso às bibliotecas, a boa comida nas escolas”. “Os países menores estão criando uma dependência da Venezuela, como é o caso dos estados da América Central, que compram gasolina subsidiada pelo governo Chávez. Isso é um problema”. “Os Estados Unidos são o principal cliente do nosso petróleo, os que mais investem no país, para quem mais vendemos nosso serviço. Então não podemos criticá-los assim”.
Do lado de cá
Não estranha que Abert, Abra (Associação Brasileira de Radiodifusores), Aner (Associação Nacional de Editores de Revista), ANJ (Associação Nacional de Jornais), entre outras, estejam tão preocupadas com a situação da vizinha RCTV. A decisão do governo Chávez pela não-renovação da concessão da RCTV ajuda a desmontar a tradição mundial de renovação automática das outorgas, algo que não interessa a nenhum atual concessionário.
Por aqui, o exemplo da Venezuela pode parecer ameaçador aos que se beneficiam da condição de concessionários para utilizar a mídia como instrumento de poder. Isso explica a reação desmensurada e editorizalizada da grande imprensa brasileira ao caso da RCTV e ao grande “ato pela liberdade de expressão” promovido em São Paulo nesta quinta, principalmente se lembrarmos que no dia 5 de outubro vencem diversas outorgas, incluindo as concedidas a todas as cinco emissoras próprias da Rede Globo.
Ao final da coletiva, questionei o diretor geral da Abert, Flávio Cavalcanti Jr, sobre que critérios que, na sua opinião, deveriam ser levados em conta para a não renovação de uma concessão no Brasil. Ele disse que os contratos de concessão são públicos e que, se forem quebrados, a concessão deveria ser questionada na Justiça: “todo dia é dia para quem está insatisfeito fazer isso”.
É verdade que ainda falta ao governo Chávez deixar claro todos os trâmites do processo de não-renovação da concessão da RCTV, incluindo a apelação ainda em aberto na Justiça Venezuela. E é fato que medidas como o confisco das instalações da RCTV são pouco – ou nada – justificáveis se comparadas à garantia do exercício soberano de qualquer Estado gerir o bem público espectro eletromagnético. Mas é verdade também que o cenário geopolítico em que se encontra a Venezuela é bastante diferente do brasileiro. Agora, se nossos radiodifusores querem tanto discutir as “ameaças” do governo Chávez à liberdade de expressão, por que não se dispõem logo a olhar pro seu quintal?
No Brasil, a forte concentração de propriedade dos meios de comunicação e a forte influência política que estas empresas exercem têm impedido qualquer debate sobre a importância para o estado democrático de analisar, avaliar, julgar e, quando necessário, não renovar uma concessão. E por aqui, o uso das concessões de rádio e TV também descumpre princípios e parâmetros estabelecidos na Constituição Federal. Por aqui, são os donos dos meios de comunicação que, na prática, asfixiam a liberdade de expressão, mantendo o controle absoluto do que se ouve, lê e escuta por 180 milhões de brasileiros.
Pelo discurso de Marcel Granier, ficou claro que a apropriação da defesa da liberdade de expressão e sua utilização como figura de retórica é algo que os radiodifusores fazem muito bem. Na Venezuela e no Brasil.
* Bia Barbosa é editora de Direitos Humanos da Carta Maior, membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e empreendedora social da Ashoka.
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