O alcance catastrófico de tal mudança é duvidoso, no entanto. Não é o número de reeleições possíveis o critério definidor da democracia e países importantes e democráticos como França, Espanha ou Grã-Bretanha não adotam quaisquer limites de quantas reeleições podem concorrer seus chefes de governo[1]. Tony Blair, por exemplo, foi eleito em 1997 e reeleito em 2001 e 2005. Afastou-se do cargo em 2007 por decisão própria e acordos internos de seu partido, mas nenhuma lei britânica o impediria de ter cumprido seu mandato e buscado outra reeleição ao final. Mesmo nos EUA, até a aprovação da 22ª Emenda em 1951 não havia limite ao número de reeleições presidenciais (tendo o presidente F. D. Roosevelt, pai do New Deal, sido eleito e reeleito por quatro mandatos consecutivos). Por mais que Chávez possa ser candidato mais uma, duas, três ou quatro vezes, continuaria sendo o povo venezuelano, em eleições diretas e livres, o responsável por escolher seu presidente. Enquanto tais eleições forem limpas (e observadores internacionais de órgãos como a OEA ou a Fundação Carter têm atestado até o momento a limpeza das eleições venezuelanas até aqui realizadas), não há grandes riscos à democracia.
Até porque a Constituição Venezuelana prevê mais uma salvaguarda democrática que nenhum dos países citados adota[2]: o referendo revogatório. Após a metade do mandato de qualquer representante eleito, a população pode convocar, mediante abaixo-assinado de 20% do eleitorado, uma espécie de plebiscito em que pode revogar seu mandato e convocar novas eleições antecipadas. Tal mecanismo foi utilizado em 2005 pela oposição venezuelana. Na ocasião, a aprovação popular do presidente foi suficiente para garantir-lhe a permanência no governo, mas o mecanismo continua vigente e o mesmo povo que o reelegeu em 2006 e que, se aprovada a mudança, poderá ser chamado a reelegê-lo (ou não) outra vez, poderá também removê-lo do cargo antes do fim do mandato, através de sufrágio, se assim julgar conveniente.
Entretanto, a reforma constitucional proposta é muito mais ampla que esse único artigo, apresentado erroneamente como o coração da reforma. Anunciada pelo presidente como necessária para a transição venezuelana rumo ao socialismo do século XXI, entre suas outras propostas, em geral mencionadas en passant ou nem mesmo citadas, figuram reformas progressistas como a redução da jornada de trabalho para seis horas diárias e 36 horas semanais (34 horas/semana no caso de trabalho noturno; emenda ao artigo 90 da CRBV), reconhecimento das heranças culturais indígenas, africanas e européias e proteção da diversidade cultural venezuelana (emenda ao artigo 100), a proibição do latifúndio (emenda ao artigo 307), fim da autonomia do Banco Central (emenda aos artigos 318, 320 e 321) e instituição de outras formas de propriedade além da dicotomia propriedade privada/propriedade pública, estabelecendo além dessas as propriedades sociais, coletivas e mistas (emenda ao artigo 115).
A própria quimera do ataque à democracia desfaz-se nas propostas de emenda aos artigos 67 e 70 da CRBV, que estabelecem os direitos dos cidadãos a associarem-se politicamente de maneira livre e a votar e serem votados, além de alguns mecanismos de democracia direta como os já existentes e mantidos referendos e os novos Conselhos de Poder Popular, estabelecidos na proposta em emendas aos artigos 70, 136, 156 e 168 como formas de participação direta cidadã em nível municipal.
Certamente, são propostas que vão na contramão do pensamento único neoliberal por tanto tempo dominante na América Latina, mas não são por isso menos democráticas[3]. Tamanha convergência nos dados divulgados e omitidos pela grande mídia acerca da reforma constitucional venezuelana parece sugerir certa intencionalidade em condenar moralmente o governo de Chávez e seu Socialismo do Século XXI. A divulgação da mudança no artigo 230 como pavimentação do caminho à ditadura, desde que convenientemente omitidas suas semelhanças com regimes políticos europeus “sérios” e estáveis vigentes, serve a um duplo propósito. Por um lado, associa o novo socialismo ao velho socialismo autoritário, desacreditando a idéia levantada. Por outro, funciona como uma cortina de fumaça para ocultar as outras mudanças propostas, cujo exemplo poderia ser demasiado subversivo em países ainda extremamente desiguais e onde as políticas neoliberais outrora implementadas ainda teimam em morrer.
Conforme afirma Pedro Mireles, quando Chávez trouxe de volta o socialismo ao horizonte político democrático foi tratado com desdém, mas “Qual é o problema de propor a possibilidade do socialismo na região? Quem sentenciou que é absurdo falar da vigência do ideal socialista? Contra a ditadura do discurso único que ’aboliu’ arbitrariamente do horizonte político democrático a possibilidade do caráter socialista de um regime, a provocação chavista deve nos levar a repensar que o socialismo não é uma idéia morta nem ultrapassada, mas que merece ser tratada e proposta no século XXI” (MIRELES, 2007:1).
Ainda que em seu artigo levante dúvidas quanto à realidade do socialismo chavista por seu caráter estatizante e falta de novidades concretas, é preciso lembrar que as presentes mudanças constitucionais haviam então sido prometidas, mas não se sabia ao certo em que consistiriam. E de fato, até então o único grande anúncio do governo era a reestatização dos setores telefônico, elétrico e petrolífero. E se é certo que um novo socialismo que se pretenda realmente diferente não poderá simplesmente recorrer à velha idéia de estatizar toda a economia nas mãos do Estado, tampouco é esse o caso venezuelano.
[Chávez] não está falando em se livrar da propriedade privada. O setor privado [venezuelano] hoje desempenha um papel maior do que desempenhava antes de Chávez chegar ao poder. São experiências, mas são coisas pelas quais o povo venezuelano votou (WEISBROT, apud. GARCEZ, 2007).
Como bem lembra o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, “O socialismo do séc. XXI, como o próprio nome indica, define-se, por enquanto, melhor pelo que não é do que pelo que é: não quer ser igual ao socialismo do séc. XX, cujos erros e fracassos não quer repetir” (2007).
Há mais dúvidas que certezas no caminho trilhado pela Venezuela e é incerto se as mudanças ora propostas serão mesmo capazes de criar as bases de uma nova sociedade e um novo socialismo, mas desqualificá-las falsamente como antidemocráticas com base em um único artigo constitucional que nada tem de muito diferente se comparado a algumas das mais exemplares democracias hoje existentes nada mais é que uma manipulação mal-intencionada por parte de alguns meios. E que tem recebido adesões apressadas mesmo entre alguns daqueles a quem deveria caber a análise crítica dos fatos.
Referências Bibliográficas
COUTINHO, Marcelo. Um ditador em tempos modernos. Disponível em:
GARCEZ, Bruno. Reeleição sem limites na Venezuela é 'experimento democrático', diz analista. BBCBrasil.com, 16 agosto 2007. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/08/070815_chavezanalisebg.shtml>. Acesso em: 24 agosto 2007.
MEJÍAS, Enyerve. Cuadro comparativo CRBV Vs. propuesta de reforma. Aporrea, Caracas, 21 agosto 2007. Disponível em: < http://www.aporrea.org/actualidad/n99947.html>. Acesso em 24 agosto 2007.
MIRELES, Pedro D. M. O estigma do socialismo: entre o obsoleto e a novidade. Disponível em:
SANTOS, Boaventura de Sousa. O Socialismo do Século XXI. Carta Maior, Porto Alegre, 24 maio 2007. Disponível em:
Nenhum comentário:
Postar um comentário