Comandante Ernesto "Che" Guevara
Estimado Companheiro,
(Guevara refere-se a Carlos Quijano, do semanário Marcha, de Montevidéu.).
Estou terminando estas notas durante minha viagem pela África, animado pelo desejo de cumprir, ainda que tardiamente, minha promessa. Gostaria de fazê-lo desenvolvendo o tema do título. Penso que pode ser interessante para os leitores do Uruguai.
É comum ouvir da boca dos porta-vozes do capitalismo, como um argumento na luta ideológica contra o socialismo, a afirmação de que este sistema social, ou o período de construção do socialismo que estamos atualmente vivendo, se caracteriza pela abolição do indivíduo no altar do Estado. Não tentarei refutar esta afirmação a partir de uma base meramente teórica, mas sim estabelecer os fatos tal como acontecem em Cuba e acrescentar comentários de caráter geral. Primeiro esboçarei em pinceladas á história de nossa luta revolucionária antes e depois da tomada do poder.
Como se sabe, a data exata em que se iniciaram as ações revolucionárias que culminaram com o 1° de janeiro de 1959, foi 26 de julho de 1953. Um grupo de homens dirigidos por Fidel Castro atacou na madrugada desse dia o quartel Moncada na Província de Oriente. O ataque foi um fracasso, o fracasso se transformou em desastre e os sobreviventes foram parar na prisão, para reiniciar, logo depois de terem sido anistiados, a luta revolucionária.
Durante este processo existiam apenas germes de socialismo e o homem era um fator fundamental. Nele se confiava, era individualizado, específico, com nome e sobrenome, e o triunfo ou o fracasso da ação empreendida dependia da sua própria capacidade.
Chegou a etapa da luta guerrilheira. Esta se desenvolveu em dois ambientes diferentes: o povo, massa ainda adormecida que precisava ser mobilizada, e sua vanguarda, a guerrilha, motor impulsor do movimento, gerador de consciência revolucionária e de entusiasmo combativo. Esta vanguarda foi o agente catalisador, aquele que criou as condições subjetivas necessárias à vitória. Na vanguarda também, no interior do processo de proletarização do nosso pensamento, da
revolução que se processava em nossos hábitos e nossas mentes, o indivíduo foi o fator fundamental. Cada um dos combatentes da Sierra Maestra que alcançou algum grau superior nas forças revolucionárias tem em seu haver uma história de fatos notáveis. Era em função destes fatos que ele conseguia seus galões.
Esta foi a primeira época heróica, na qual se disputava para conseguir um cargo de maior responsabilidade, onde o perigo era maior sem outra satisfação que a do dever cumprido. No nosso trabalho de educação revolucionária voltamos bastante sobre este tema educativo. Na atitude dos nossos combatentes visualizava-se o homem do futuro.
Este fato da entrega total à causa revolucionária se repetiu em outras oportunidades na nossa história. Durante a crise de Outubro ou durante os dias do furacão Flora, pudemos constatar atos de valor e de sacrifícios extraordinários realizados por um povo inteiro. Uma das nossas tarefas fundamentais do ponto de vista ideológico e a de encontrar a fórmula para perpetuar esta atitude heróica na vida quotidiana.
Em janeiro de 1959, o governo revolucionário se estabeleceu com a participação de vários membros da burguesia entreguista. A presença do exército rebelde constituía a garantia do poder, um fator fundamental de força.
Em seguida ocorreram contradições sérias, resolvidas em primeira instância em fevereiro de 1959, quando Fidel Castro assumiu a chefia do governo no cargo de Primeiro Ministro. O processo culminava com a renúncia do presidente Urrutia diante da pressão das massas em julho do mesmo ano.
Neste momento aparecia na história da revolução cubana, com características bem nítidas, um personagem que de agora em diante estará sistematicamente presente: a massa.
Este ente de múltiplas facetas não e, como se pretende, a soma de elementos de uma mesma categoria (reduzidos, aliás, a uma mesma categoria por imposição do sistema), que atua como um manso rebanho. É verdade que segue sem vacilar seus dirigentes, principalmente Fidel Castro; mas o grau desta confiança que ele conquistou está em função precisamente da interpretação cabal dos desejos do povo, de suas aspirações e da luta sincera que ele travou para o cumprimento das promessas feitas.
A massa participou na Reforma Agrária e no difícil empenho de administrar as empresas estatais; passou pela experiência heróica de
Playa Girón; forjou-se nas lutas contra as várias hordas de bandidos armados pela CIA; viveu uma das definições mais importantes dos tempos modernos na crise de Outubro e está hoje trabalhando para a construção do socialismo.
Se olhamos as coisas de um ponto de vista superficial, pode parecer que aqueles que falam da subordinação do indivíduo ao Estado têm razão; a massa realiza com um entusiasmo e uma disciplina sem par as tarefas determinadas pelo governo, sejam elas de caráter econômico, cultural, de defesa, esportivo, etc. A iniciativa parte geralmente de Fidel ou do alto comando da revolução, é explicada ao povo, que a acata como sendo sua. Outras vezes o Partido e o governo escolhem experiências localizadas e generalizam-nas seguindo o mesmo procedimento.
No entanto, às vezes o Estado está errado. Quando um desses erros se produz, nota-se uma diminuição do entusiasmo coletivo através de uma diminuição quantitativa de cada um dos elementos que formam este coletivo, e o trabalho diminui até ficar reduzido a proporções insignificantes: esse e o momento de corrigir. Isso aconteceu em março de 1962, diante da política sectária imposta ao Partido por Aníbal Escalante.
É evidente que o mecanismo não e suficiente para assegurar uma série de medidas sensatas e que falta uma conexão mais estruturada com a massa. Devemos melhorar isso no decorrer dos próximos anos, mas para o caso das iniciativas provindas das instâncias superiores do governo, utilizamos por enquanto o método quase intuitivo de auscultar as reações gerais face aos problemas colocados.
Fidel é mestre nisso e seu modo particular de integração com o povo só pode ser apreciado vendo-o atuar. Nas grandes concentrações públicas observa-se algo como o diálogo de dois diapasões, cujas vibrações provocam outras no interlocutor. Fidel e a massa começam a vibrar num diálogo de intensidade crescente até alcançar o clímax num final abrupto coroado por nosso grito de luta de vitória.
O que fica difícil entender para quem não vive a experiência da revolução e esta estreita unidade dialética existente entre o indivíduo e a massa, onde ambos se inter-relacionam, e a massa por sua vez, enquanto conjunto de indivíduos, se inter-relaciona com os dirigentes.
No capitalismo pode-se verificar alguns fenômenos desse tipo quando aparecem políticos capazes de conseguir a mobilização
popular, mas se não se tratar de um autêntico movimento social, e nesse caso não e totalmente lícito falar de capitalismo, o movimento durará enquanto durar a vida de quem o impulsiona ou até o fim das ilusões populares, imposto pelo rigor da sociedade capitalista. Nesta sociedade o homem é dirigido por uma ordem fria que habitualmente escapa ao domínio de sua compreensão. O indivíduo alienado tem um cordão umbilical invisível que o liga à sociedade no seu conjunto: a lei do valor. Ela atua em todos os aspectos de sua vida, modela seu caminho e seu destino.
As leis do capitalismo, invisíveis para o homem comum e cegas, atuam sobre o indivíduo sem que este o perceba. Ele vê apenas a amplitude de um horizonte que parece infinito. É apresentado desse modo pela propaganda capitalista, que pretende tirar do caso Rockefeller verídico ou não uma lição sobre as possibilidades de êxito. A miséria que é necessária acumular para que surja um exemplo como este e a quantidade de desgraças que uma fortuna dessa magnitude ocasionou para poder existir não aparecem no quadro, e nem sempre as forças populares têm a possibilidade de aclarar estes conceitos. (Caberia aqui uma indagação sobre como, nos países imperialistas, os trabalhadores perdem seu espírito de classe internacional por causa de uma certa cumplicidade na exploração dos países dependentes e como este fato ao mesmo tempo diminui o espírito de luta das massas no próprio país; mas este é um tema que foge ao propósito destas notas).
De qualquer maneira, mostra-se o caminho com obstáculos que, aparentemente, o indivíduo com as qualidades necessárias pode superar para chegar até a meta final. O prêmio é visualizado a distância; o caminho é solitário. Além de tudo é preciso transformar-se em lobo pode-se chegar apenas à custa do fracasso de outros.
Tentarei agora definir o indivíduo, ator desse estranho e apaixonante drama que e a construção do socialismo, em sua dupla existência de ser único e membro da comunidade.
Penso que o mais simples é reconhecer sua qualidade de não feito, de produto não acabado. As taras do passado se transmitem até o presente na consciência individual e há necessidade de se fazer um trabalho contínuo para erradicá-las.
O processo é duplo: por um lado a sociedade atua com sua educação direta e indireta, por outro lado o indivíduo se submete a um processo consciente de auto-educação.
A nova sociedade em formação deve competir muito duramente com o passado. Isto se faz sentir não apenas na consciência individual, na qual pesam os resíduos de uma educação sistematicamente orientada para o isolamento do indivíduo, mas também pelo próprio caráter desse período de transição, onde permanecem as relações mercantis. A mercadoria e a célula econômica da sociedade capitalista; enquanto existir, seus efeitos se farão sentir na organização da produção e, em conseqüência, na consciência.
No esquema de Marx se concebia o período de transição como resultado da transformação explosiva do sistema capitalista destruído por suas contradições; na realidade posterior viu-se como caem da árvore imperialista alguns países que constituem os ramos mais débeis, fenômeno previsto por Lênin. Nesses países o capitalismo se desenvolveu suficientemente para fazer sentir seus efeitos de um ou outro modo sobre o povo, mas não são suas próprias contradições que, esgotadas todas as possibilidades, fazem explodir o sistema. A luta de libertação contra um opressor externo, a miséria provocada por acidentes estranhos como a guerra, cujas conseqüências fazem recair as classes privilegiadas sobre os explorados, os movimentos de libertação destinados a derrotar regimes neocolonialistas, são os fatores habituais do desencadeamento. A ação consciente faz o resto.
Nestes países não se produziu ainda uma educação completa para o trabalho social, a riqueza está longe de poder chegar às massas através do simples processo de apropriação. O subdesenvolvimento por um lado e a habitual fuga de capitais até países "civilizados" por outro tornam impossível uma mudança rápida e -sem sacrifícios. Resta um grande caminho a percorrer na construção da base econômica, e a tentação de seguir pelos caminhos do interesse material como alavanca impulsora de um desenvolvimento acelerado é muito grande.
Corre-se o perigo de que as árvores impeçam de ver o bosque. Perseguindo a quimera de realizar o socialismo graças às armas que nos legou o capitalismo (a mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como alavanca, etc.), pode-se chegar a um beco sem saída. Pode-se percorrer uma longa distância na qual os caminhos se cruzam muitas vezes e onde é difícil perceber o momento em que se errou de caminho. Entretanto, a base econômica adaptada fez seu trabalho de corrosão sobre o desenvolvimento da consciência. Para construir o comunismo, paralelamente à base material tem que se fazer um homem novo.
Daí a importância de escolher corretamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve ser de índole moral fundamentalmente, sem esquecer uma correta utilização do estímulo material, sobretudo de natureza social.
Como já disse, num momento de perigo extremo é fácil potencializar os estímulos morais; para manter sua vigência, é necessário que se desenvolva um consciência na qual os valores adquiram categorias novas. A sociedade em seu conjunto deve se transformar em uma gigantesca escola.
As grandes linhas do fenômeno são semelhantes ao processo de formação da consciência capitalista em sua primeira fase. O capitalismo recorre à força, mas também educa as pessoas dentro do sistema. A propaganda direta é realizada pelos encarregados de explicar a perenidade de um regime de classe, seja de origem divina ou por imposição da natureza como ente mecânico. Isso aplaca as massas, que se vêem oprimidas por um mal contra o qual não e possível lutar.
Em seguida vem a esperança, e neste ponto que se diferencia dos regimes anteriores de casta, que não apontavam saídas possíveis.
Para alguns continuará vigente ainda a forma de castas: o prêmio para os obedientes consiste no acesso, depois da morte, a outros mundos maravilhosos onde os bons são premiados, como acontece na velha tradição. Para outros há inovação: a separação em classes é fatal, mas os indivíduos podem sair da classe a que pertencem através do trabalho, da iniciativa, etc. Este processo e. o da auto-educação para o triunfo devem ser profundamente hipócritas: é a demonstração interessada de que uma mentira é verdade.
No nosso caso, a educação direta adquire uma importância muito maior. A explicação e convincente porque é verdadeira: não precisa de subterfúgios. Ela se exerce através do aparato educativo do Estado em função da cultura geral, técnica e ideológica, por meio de organismos como o Ministério da Educação e o aparelho de divulgação do partido. A educação penetra nas massas e a nova atitude preconizada tende a converter-se em hábito; a massa vai incorporando-a e pressiona quem ainda não se educou. Essa é a forma indireta de educar as massas, tão poderosa quanto a outra.
Mas o processo é consciente: o indivíduo recebe continuamente o impacto do novo poder social e percebe que não está completamente adequado a ele. Sob a influência da pressão que supõe a educação indireta, ele trata de acomodar-se a uma situação
que sente como justa e cuja própria falta de desenvolvimento o tinha impedido de fazê-lo até agora. Ele se auto-educa.
Neste período de construção do socialismo podemos ver o homem novo que está nascendo. Sua imagem ainda não está acabada, nem poderia, já que o processo anda paralelo ao desenvolvimento de formas econômicas novas. Tirando aqueles cuja falta de educação os faz tender para o caminho solitário, para a auto-satisfação de suas ambições, aqueles que mesmo dentro desse novo panorama de marcha conjunta têm a tendência de caminhar isolados da massa que acompanham, o importante é que os homens adquirem cada dia maior consciência da necessidade de sua incorporação à sociedade e, ao mesmo tempo, de sua importância como motores da mesma.
Eles já não andam sozinhos por caminhos perdidos em direção a longínquas aspirações. Eles seguem a vanguarda constituída pelo Partido, pelos operários mais avançados e pelos homens da vanguarda que caminham ligados às massas e em estreita comunicação com elas. As vanguardas têm os olhos voltados para o futuro e sua recompensa, mas esta não é vista como algo individual; o prêmio é a nova sociedade, na qual os homens terão características diferentes: a sociedade do homem comunista.
O caminho é longo e cheio de dificuldades. Às vezes, por ter-se enganado de caminho, tem que, retroceder; outras vezes, por caminhar depressa demais, nos separamos das massas; em certas ocasiões, por fazê-lo lentamente, sentimos a presença próxima dos que pisam nos nossos calcanhares. Em nossa ambição de revolucionários tentamos caminhar tão depressa quanto possível, abrindo caminhos; mas sabemos que temos que nutrir-nos da massa e essa somente poderá avançar mais rápido se a animamos com nosso exemplo.
Apesar da importância dada aos estímulos morais, o fato de existir a divisão em dois grupos principais (excluindo, claro, a facção minoritária dos que não participam por uma razão ou outra da construção do socialismo) aponta a relativa falta de desenvolvimento da consciência social. O grupo de vanguarda é ideologicamente mais avançado que a massa; esta conhece os novos valores, mas insuficientemente. Enquanto nos primeiros se dá uma mudança qualitativa que lhes permite se sacrificar na sua função de vanguarda, os segundos apenas seguem e devem ser submetidos a estímulos e pressões de certa intensidade; é a ditadura do proletariado que se
exerce não somente sobre a classe derrotada, mas também individualmente sobre a classe vencedora.
Tudo isto implica, para seu êxito total, a necessidade da existência de uma série de mecanismos que são as instituições revolucionárias. Na imagem das multidões marchando para o futuro se encaixa o conceito de institucionalização como o de um conjunto harmônico de canais, escalões, comportas, aparatos bem azeitados que permitam essa marcha, que permitam a seleção natural daqueles destinados a caminhar na vanguarda e que concedam o prêmio aos que cumprem e o castigo aos que atentem contra a sociedade em construção.
Esta institucionalidade da revolução ainda não foi alcançada. Buscamos algo novo que permita a perfeita identificação entre o governo e a comunidade em seu conjunto, ajustada às condições peculiares à construção do socialismo e fugindo ao máximo dos lugares comuns da democracia burguesa, transplantados para a sociedade em formação (como as câmaras legislativas, por exemplo). Foram feitas algumas experiências no sentido de se criar progressivamente a institucionalização da revolução, mas sem maior pressa. O freio maior que encontramos foi o medo de que qualquer aspecto formal nos separe das massas e do indivíduo, nos faça perder de vista a última e mais importante ambição revolucionária, que é a de ver o homem libertado da alienação.
Apesar da carência das instituições, o que deve ser superado gradualmente, as massas agora fazem a história como um conjunto consciente de indivíduos que lutam por uma mesma causa. O homem, no socialismo, apesar de sua aparente padronização, e mais completo; apesar da falta do mecanismo perfeito para isso, sua possibilidade de expressar-se e de influir no aparato social é infinitamente maior.
Mas e preciso ainda acentuar sua participação consciente, individual e coletiva em todos os mecanismos de direção e produção, e ligá-la à idéia da necessidade da educação técnica e ideológica, de maneira que sinta como estes processos são estreitamente interligados e seus avanços paralelos. Deste modo alcançará a total consciência de seu ser social, o que equivale à sua plena realização como criatura humana, uma vez quebradas as correntes da alienação.
Isto se traduzirá concretamente pela reapropriação de sua natureza através do trabalho liberado e a expressão de sua própria condição humana através da cultura e da arte.
Para que se desenvolva na primeira, o trabalho deve adquirir uma nova condição. A mercadoria homem cessa de existir e se instala um sistema, que outorga uma quota pelo cumprimento do dever social. Os meios de produção pertencem à sociedade e a máquina é apenas a trincheira onde o dever é cumprido. O homem começa a libertar seu pensamento da obrigação penosa que tinha de satisfazer suas necessidades animais através do trabalho. Ele começa a se ver retratado em sua obra e a compreender sua magnitude humana através do objeto criado, do trabalho realizado. Isto já não significa deixar uma parte de seu ser em forma de força de trabalho vendida, que não lhe pertence mais, mas significa uma emanação de si mesmo, uma contribuição à vida comum, em que se reflete; o cumprimento do seu dever social.
Fazemos todos o possível para dar ao trabalho esta nova categoria de dever social e uni-lo, por um lado, ao desenvolvimento da técnica que dará condições para uma maior liberdade e, por outro lado, ao trabalho voluntário, embasado na concepção marxista de que o homem realmente alcança sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de se vender como mercadoria.
Claro que existem ainda aspectos coercitivos no trabalho, mesmo quando é voluntário; o homem não transformou toda a coerção que o rodeia num reflexo condicionado de natureza social, e produz ainda, em muitos casos, sob a pressão do meio (compulsão moral, como a chama Fidel). Ainda lhe falta conseguir a plena recriação espiritual diante de sua obra, sem a pressão direta do meio social, mas ligado a ele pelos novos hábitos. Isto será o comunismo.
A mudança não se produz automaticamente na consciência como também não se produz na economia. As variações são lentas e não são rítmicas; há períodos de aceleração, outros de estagnação e inclusive de retrocesso.
Devemos considerar também, como já dissemos antes, que não estamos diante do período de transição pura, como o descreveu Marx na Crítica do programa de Gotha, mas numa nova fase não prevista por ele; o primeiro período de transição do comunismo ou da construção do socialismo. Isto se dá em meio de lutas de classe violentas e com elementos de capitalismo em seu seio, que obscurecem a compreensão cabal de sua essência.
Se a isto acrescentamos o escolasticismo que freou o desenvolvimento da filosofia marxista e impediu o tratamento
sistemático do período, cuja economia política não se desenvolveu, devemos convir que ainda estamos no berço e que é preciso dedicar-se a investigar todas as características primordiais deste período antes de elaborar uma teoria econômica e política de maior alcance.
A teoria resultante dará maior importância aos dois pilares da construção: a formação do homem novo e o desenvolvimento da técnica. Em ambos os aspectos ainda resta muito por fazer, mas é menos perdoável o atraso no que diz respeito à concepção da técnica como base fundamental, a que neste terreno não se trata de avançar às cegas, mas de seguir durante bom tempo o caminho aberto pelos países mais adiantados do mundo. Por isso Fidel insiste tanto sobre a necessidade da formação tecnológica e científica de todo o nosso povo e mais ainda de sua vanguarda,
No campo das idéias que conduzem a atividades não produtivas, é mais fácil ver a divisão entre a necessidade material e a espiritual. Faz muito tempo que o homem tenta libertar-se da alienação mediante a cultura e a arte. Ele morre diariamente oito ou mais horas por dia enquanto atua como mercadoria, para ressuscitar depois através de sua criação espiritual. Mas este remédio traz os germes da mesma doença: é um ser solitário que busca comunhão com a natureza. Ele defende sua individualidade oprimida pelo meio e reage diante das idéias estéticas como um ser único cuja aspiração é permanecer imaculado.
Trata-se apenas de uma tentativa de fuga. A lei do valor já não e um mero reflexo das relações de produção; os capitalistas monopolistas rodeiam-na de um complicado sistema que a converte numa serva dócil, mesmo que os métodos empregados sejam puramente empíricos. A superestrutura impõe um tipo de arte no qual os artistas têm que ser educados. Os rebeldes são dominados pela maquinaria e somente os talentos excepcionais poderão criar sua obra própria. Os restantes se tornam assalariados envergonhados ou são triturados.
Inventa-se a investigação artística que se dá corno definição da liberdade, mas esta "pesquisa" tem seus limites, imperceptíveis até o momento de se chocar com eles, ou seja, de se colocar os problemas reais do homem em sua alienação. A angústia sem sentido ou o passatempo vulgar constituem válvulas cômodas para a preocupação humana; combate-se a idéia de fazer da arte uma arma de denúncia.
Se as regras do jogo são respeitadas, pode-se obter todas as honras: as que ganharia um macaco ao inventar piruetas. A condição é não tentar escapar da jaula invisível.
Quando a revolução tomou o poder, produziu-se o êxodo dos domesticados; os demais, revolucionários ou não, viram um novo caminho. A pesquisa artística ganhou novo impulso. No entanto, os caminhos estavam mais ou menos traçados e o sentido do conceito fuga se escondeu por trás da palavra liberdade. Os próprios revolucionários mantiveram muitas vezes esta atitude, reflexo do idealismo burguês na consciência.
Em países que passaram por um processo similar, tentou-se combater estas tendências com um dogmatismo exagerado. A cultura geral se converteu em tabu e a representação formalmente exata da natureza foi proclamada o ápice da aspiração cultural, e esta se converteu logo numa representação mecânica da realidade social que se queria fazer ver; a sociedade ideal, quase sem conflitos e contradições, que se tentava criar.
O socialismo é jovem e comete erros. Nós, os revolucionários, carecemos dos conhecimentos e da audácia intelectual necessários para encarar a tarefa do desenvolvimento de um novo homem por métodos diferentes dos convencionais, e os métodos convencionais sofrem a influência da sociedade que os criou (mais uma vez se coloca o tema da relação entre forma e conteúdo). A desorientação e grande e os problemas da construção material nos absorvem. Não existem artistas reconhecidos, que por sua vez tenham autoridade revolucionária. Os homens do Partido devem assumir esta tarefa e tentar conseguir o objetivo principal: educar o povo.
Procura-se então a simplificação, que é o que todo mundo entende e que é também o que os funcionários entendem. A pesquisa artística autêntica é anulada e o problema da cultura geral é reduzido a uma apropriação do presente socialista e do passado morto (portanto, não perigoso). Assim nasce o realismo socialista sobre as bases da arte do século passado.
Mas a arte realista do século XIX também é de classe, talvez mais puramente capitalista do que esta arte decadente do século XX, onde transparece a angústia do homem alienado. O capitalismo em termos de cultua já deu tudo de si e dele não resta nada senão o anúncio de um cadáver fedorento; em arte, sua decadência de hoje.Mas por que pretender buscar nas formas congeladas do realismo socialista a única receita válida? Não se pode opor ao
realismo socialista a "liberdade", porque esta não existe ainda e não existirá até o desenvolvimento completo da sociedade nova, mas não se deve pretender condenar todas as formas de arte posteriores à primeira metade do século XIX, desde o trono pontifício do realismo, pois se cairia num erro proudhoniano de retorno ao passado, colocando camisa de força na expressão artística do homem que nasce e se constrói hoje.
Falta o desenvolvimento de um mecanismo ideológico e cultural que permita a pesquisa e destrua a erva daninha tão facilmente multiplicável no terreno beneficiado pela subvenção estatal.
No nosso país o erro do mecanicismo realista não ocorreu; mas sim um outro de signo contrário. Deu-se por não se ter compreendido a necessidade da criação do homem novo que não seja o representado pelas idéias do século XIX nem tampouco pelas do nosso século decadente mórbido. O homem do século XXI é aquele que devemos criar, mesmo que ainda seja uma aspiração subjetiva e não sistematizada. Este é precisamente um dos pontos fundamentais do nosso estudo e do nosso trabalho e, na medida em que consigamos êxitos concretos sobre uma base teórica ou, vice-versa, se extraiam conclusões teóricas de caráter amplo sobre a base de nossa pesquisa concreta, teremos dado uma contribuição valiosa ao marxismo-leninismo, à causa da humanidade.
A reação contra o homem do século XIX nos fez cair na reincidência do decadentismo do século XX. Não é um erro demasiadamente grave mas devemos superá-lo sob pena de abrir um largo espaço ao revisionismo.
As grandes multidões estão se desenvolvendo, as novas idéias vão alcançando ímpeto adequado no seio da sociedade, e as possibilidades materiais de desenvolvimento integral de absolutamente todos os seus membros tornam o labor muito mais frutífero. O presente é de luta; o futuro é nosso.
Resumindo, a culpa de muitos dos nossos intelectuais e artistas reside em seu pecado original; não são autenticamente revolucionários. Podemos tentar enxertar o olmo para que dê pêras, mas simultaneamente temos que plantar a pereira. As novas gerações estarão livres do pecado original. As probabilidades de que surjam artistas excepcionais serão tanto maiores quanto mais se tenha ampliado o campo da cultura e a possibilidade de expressão. Nossa tarefa consiste em impedir que a geração atual, desarticulada por seus conflitos, se perverta e perverta as novas. Não devemos criar
assalariados dóceis ao pensamento oficial nem "bolsistas" que vivam do amparo governamental, exercendo uma liberdade entre aspas. Logo virão os revolucionários que entoam o canto do homem novo com a voz autêntica do povo. Ê um processo que exige tempo.
Na nossa sociedade a juventude e o Partido Comunista desempenham um grande papel.
A primeira e particularmente importante por ser a matéria maleável com a qual se pode construir o homem novo sem nenhuma das taras anteriores.
Ela recebe um tratamento de acordo com nossas ambições. Sua educação é cada vez mais completa e não esquecemos sua integração com o trabalho desde os primeiros momentos. Nossos bolsistas fazem trabalho físico durante suas férias ou simultaneamente com o estudo. O trabalho em certos casos é um prêmio, em outros um instrumento de educação, mas nunca um castigo. Uma nova geração nasce.
O Partido e uma organização de vanguarda. Os melhores trabalhadores são propostos por seus companheiros para integrá-lo. Ele é minoritário, mas de grande importância pela qualidade de seus quadros. Nossa aspiração e que o Partido seja de massas, mas somente quando as massas tenham alcançado o nível de desenvolvimento da vanguarda; quer dizer, quando estejam educadas para o comunismo. O trabalho é dirigido para esta educação. O Partido é o exemplo vivo: seus quadros devem dar aulas de labor e sacrifício, devem levar, com sua ação, as massas até o fim da tarefa revolucionária, o que implica anos de dura luta contra as dificuldades da construção, dos inimigos de classe, as marcas do passado, o imperialismo...
Eu queria agora explicar o papel desempenhado pela personalidade. pelo homem como indivíduo dirigente das massas que fazem a história. É nossa experiência e não uma receita.
Nos primeiros anos Fidel deu à revolução o impulso, a direção, a tônica sempre, mas existe um bom grupo de revolucionários que se desenvolveram no mesmo sentido que o dirigente máximo, e uma grande massa que segue seus dirigentes porque tem fé neles; tem fé neles porque souberam interpretar seus anseios.
Não se trata de quantos quilos de carne se come ou de quantas vezes por ano alguém pode ir passear na praia, nem de quantas belezas que vêm do exterior podem ser compradas com os salários atuais. Trata-se precisamente do indivíduo se sentir mais pleno, com
muito mais riqueza interior e com muito mais responsabilidade. O indivíduo do nosso país sabe que a época gloriosa em que lhe é dado viver é de sacrifício. Os primeiros o conheceram na Sierra Maestra e onde quer que se tenha lutado; depois o conhecemos em toda Cuba. Cuba é a vanguarda da América e deve fazer sacrifícios por ocupar justamente este lugar e porque indica às massas da América Latina o caminho da liberdade total.
No interior do país os dirigentes devem cumprir seu papel de vanguarda; e temos que dizê-lo com toda a sinceridade, em uma revolução verdadeira, na qual se dá tudo, da qual não se espera nenhuma retribuição material: a tarefa do revolucionário de vanguarda e ao mesmo tempo magnífica e angustiante.
Deixe-me dizer, com o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar num revolucionário autêntico sem esta qualidade. Talvez este seja um dos grandes dramas do dirigente: ele deve unir a um espírito apaixonado uma mente fria, e tomar decisões dolorosas sem contrair um único músculo. Nossos revolucionários de vanguarda devem idealizar este amor aos povos, às causas mais sagradas, e torná-lo único e indivisível. Não podem baixar com sua pequena dose de carinho cotidiano até os lugares onde o homem comum o pratica.
Os dirigentes da revolução têm filhos que em seus primeiros balbucios não aprendem a chamar o pai; mulheres que devem ser parte do sacrifício geral de sua vida para levar a revolução ao seu destino; o marco dos amigos corresponde estritamente ao marco dos companheiros de revolução. Não há vida fora dela.
Nestas condições deve-se ter grande dose de humanidade, grande dose de sentimentos de justiça e de verdade para não cair em extremos dogmáticos, em escolasticismos frios, em isolamento das massas. Todos os dias deve-se lutar para que este a mor à humanidade viva se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplos, de mobilização.
O revolucionário, motor ideológico da revolução dentro do seu Partido, se consome nessa atividade ininterrupta, cujo único fim é a morte, a não ser que a construção se realize em escala mundial. Se sua vontade de revolucionário diminui quando as tarefas mais prementes estão realizadas em escala local, e se esquece o internacionalismo proletário, a revolução que dirige deixa de ser uma força impulsionadora e acaba numa modorra cômoda da qual se aproveitam nossos inimigos irreconciliáveis, o imperialismo, que ganha
terreno. O internacionalismo proletário é um dever mas também uma necessidade revolucionária. Deste modo educamos nosso povo.
Claro que existem perigos presentes nas circunstâncias atuais. Não apenas o dogmatismo, não apenas de congelar as relações com as massas durante a grande tarefa, mas existe também o perigo das debilidades nas quais se pode cair. Se o homem pensa que para dedicar sua vida inteira à revolução ele não pode distrair sua mente com a preocupação da falta de um determinado produto produto para o filho, com o fato de os sapatos das crianças estarem acabando, com o fato de sua família carecer de determinado bem necessário, ele, com este raciocínio, deixa de infiltrar-se pelo germe da futura corrupção.
No nosso caso, estabelecemos que nossos filhos devem ter e carecer daquilo que têm e daquilo que carecem os filhos do homem comum; nossa família deve compreendê-lo e lutar por isso. A revolução se faz através do homem, mas o homem deve forjar dia a dia seu espírito revolucionário.
Assim vamos andando. À cabeça da imensa coluna – não temos vergonha nem estamos intimidados em dizê-lo – está Fidel, depois estão os melhores quadros do Partido e imediatamente depois, tão perto que sua enorme força pode ser sentida, está o povo em seu conjunto; sólida armação de individualidades que caminham até um fim comum; indivíduos que chegaram à consciência do que e necessário fazer; homens que lutam para sair do reino da necessidade e entrar no da liberdade.
Esta imensa multidão se ordena; sua ardem corresponde à consciência da necessidade dela; já não e mais uma força dispersa, divisível em mil frações projetadas no espaço como fragmentos de granadas, procurando apenas alcançar, utilizando-se de qualquer meio, numa luta travada contra seus semelhantes, uma posição ou algo que dê uma segurança diante de um futuro incerto.
Sabemos que existem sacrifícios à nossa frente e que devemos pagar um preço pelo fato heróico de constituir uma vanguarda como nação. Nós, dirigentes, sabemos que temos um preço a pagar por ter o direito de dizer que estamos à cabeça de um povo que está à cabeça da América. Todos e cada um de nós paga pontualmente sua quota de sacrifício, conscientes de receber o prêmio na satisfação do dever cumprido, conscientes de avançar com todos até o homem novo que se vislumbra no horizonte.
Permita-me tentar avançar algumas conclusões
Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais plenos; somos mais plenos por sermos mais livres.
O esqueleto da nossa liberdade completa está formado; falta-lhe apenas a substância protéica e a roupagem; nós as criaremos.
Nossa liberdade e sua sustentação quotidiana têm cor de sangue e estão repletas de sacrifícios.
Nosso sacrifício é consciente; quota para pagar a liberdade que construímos.
O caminho é longo e em parte desconhecido; conhecemos nossas limitações. Faremos o homem do século XXI; nós mesmos.
Nós nos forjaremos na ação quotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica.
A personalidade desempenha o papel de mobilização e de direção enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo e enquanto não se afasta do caminho.
Quem abre o caminho é o grupo de vanguarda, os melhores dentre os bons, o Partido.
O alicerce fundamental da nossa obra é a juventude: depositamos nossa esperança nela e preparamo-la para tomar a bandeira das nossas mãos.
Se esta carta balbuciante esclarece alguma coisa, está cumprindo o objetivo a que me propus.
Receba nossa saudação ritual, com um aperto de mãos ou um “Ave-maria puríssima”. Pátria ou Morte.
Reproduzido de GUEVARA, E. El socialismo y el hombre en Cuba. In: Obras. t. 2, p. 367-84, Casa de Las Américas.
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