Francisco Carlos Teixeira-
Depois de terem por mais de uma década os diversos países em suas mãos, de terem aplicado o receituário do FMI e do Banco Mundial –auto-reconhecidos, mais tarde, como ineficazes e insensíveis– as elites liberais, apegadas ao seu fundamentalismo de mercado, mostravam-se incapazes para alterar o quadro de miséria no continente. Mais grave ainda, muitas vezes somaram à miséria secular a desesperança, lançando ao fundo do poço o maravilhoso movimento de mobilização social que marcaram o fim da “Era das Ditaduras”.
O retorno do Socialismo
Bem ao contrário do que a avalanche (neo)liberal assegurava nos anos ’90, as “receitas” da felicidade liberal não garantiram, de forma alguma, bem-estar e segurança para milhões e milhões de pessoas em todo o mundo. As décadas de ’80 e ‘90, especialmente na América Latina assistiram ao fim de inúmeras ditaduras, militares ou não, existentes no continente. Na maioria das vezes amplas coalizões de forças – formadas desde a esquerda marxista até liberais e democratas-cristãos – substituíram os regimes autoritários existentes.
Durante a longa luta pelo “retorno” do Estado de Direito, as forças populares procuraram sempre alargar, expandir ao máximo, os conceitos políticos clássicos. Assim, o próprio conceito de cidadania, chave no processo de combate das arbitrariedades e casuísmos do autoritarismo, sofreu uma transmutação fundamental. Em sua origem clássica, nos pensadores liberais dos séculos XVII e XVIII, como Locke, Jefferson e Adams – a idéia de cidadania prendia-se exclusivamente ao universo político, remetendo-se a uma série de direitos – tais como acesso ao voto, debate da taxação, respeito com as instituições da esfera privada da vida.
Assim, nas grandes coligações anti-ditatoriais dos anos ’80 e ’90 na América Latina, os grupos políticos liberais, democrata-cristãos e, mesmo, muitos dos socialistas ( perplexos em face da crise do chamado socialismo “real” ) exigiam o “retorno” – e aí já havia um tremendo equívoco! – do Estado de Direito. Para estes, tratava-se de garantir o direito de voto, a liberdade de imprensa e de organização partidária, a inviolabilidade da pessoa humana, etc...
Tal agenda era, sem qualquer dúvida, aceita pelas forças populares, mais à esquerda, e pelas grandes massas que marcharam pelas ruas de Buenos Aires, Rio de Janeiro, Santiago de Chile ou Montevideo exigindo “democracia já”. Um outro equívoco, este ainda mais dramático, insinuava-se em tais manifestações unitárias. Para as grandes massas populares, depauperadas com a crise do endividamento e o esgotamento do modelo de industrialização por substituição de exportações, a “volta” do “tal Estado de Direito” deveria representar, acima de tudo, ganhos bastante concretos, tais como empregos (de qualidade) e segurança pessoal.
Do equívoco à revolta
Mais experientes, muitas vezes sócios até a vigéssima quinta hora das ditaduras, as forças liberais assumiram – urbi et orbi na América Latina – a direção dos processos de transição. Diferentes leis de anistia, de esquecimento e de “punto final” vieram lançar uma espessa pátina, uma graxa de esquecimento, sobre os mais diferentes crimes praticados, muito especialmente a tortura e a corrupção, incluindo-se aí os mecanismos absolutamente antinacionais do endividamento de mais de uma dezena de nações. Tudo se fazia em nome da reconciliação nacional, do congraçamento e da unidade do país. “Alianças Democrática”, “Concertación” e “Frentes Populares” foram criadas visando manter as forças populares encapsuladas pelas direções políticas liberais, de fundo oligárquico, e antipopulares que regeram a América Latina antes da “Era das Ditaduras”, entre 1945 e os anos ’60, durante as ditaduras, enquanto sócios menores e emasculados, e, depois dos anos ’80, enquanto representantes da modernidade, da globalização e da irreversibilidade da organização capitalista enquanto futuro único do planeta.
Aceitava-se, por esta razão, a idéia de um “retorno” a um Estado de Direito, quando na verdade produzia-se apenas um retorno ao passado de dominação liberal-oligárquico, incluindo-se aí a reciclagem e a passagem à limpo, de inúmeros próceres das oligarquias antes decaídas. A utopia então era ter o futuro como espelho do passado, saltado o hiato da “Era das Ditaduras”.
Evidentemente, a expansão e mesmo a reinvenção do conceito de cidadania eram postas de lado. As garantias de trabalho (de qualidade), da universalização do seguro social, do direito à escola e a saúde, eram totalmente abandonados pelas novas forças majoritárias – de tipo “Centrão” - que formaram bulldozers nas assembléias nacionais que deveriam passar os países da América Latina a limpo. Em verdade, era como se fosse uma conta a ser paga: o direito à liberdade política implicava na eliminação das exigências sociais amplas das massas populares, uma dívida em muitos casos – Bolívia, Paraguai, Peru, Equador – de caráter multissecular. A população deveria contentar-se com a liberdade política, o direito – limitado por diversos fatores, entre os quais a manipulação mediática das eleições, como no caso do Brasil, Bolívia e Venezuela – de participar do processo político. As dimensões sociais que se abriam para o novo conceito de cidadania deveriam ser simplesmente abandonadas.
Ao mesmo tempo, com as novas “aberturas” da economia ao mundo globalizado, os mercados nacionais eram abarrotados de quinquilharias variadas, de bonés do NY Yankees até automóveis importados, que deveriam fazer a alegria e o contentamento das classes médias locais.
A Crise
Contudo, após mais de uma década de experimento liberal, a América Latina mantinha um triste perfil: luta contra o endividamento, falência de diversos planos de reconstrução, manutenção de graves índices de analfabetismo e de incidência de doenças. Em alguns países, como a Bolívia, Paraguai e Equador, nenhuma das estruturas coloniais de dominação, incluindo-se aí o verdadeiro sistema de apartheid existente com relação aos índios e aos mestiços, havia sido sequer tocado.
Da mesma forma, a violência urbana quotidiana e a violência política – como no Brasil, Argentina e México, mas também de forma epidêmica em El Salvador, Honduras, Guatemala e Nicarágua – flagelavam a população. Em suma, depois de terem por mais de uma década os diversos países em suas mãos, de terem aplicado o receituário do FMI e do Banco Mundial – auto-reconhecidos, mais tarde, como ineficazes e insensíveis – as elites liberais, apegadas ao seu fundamentalismo de mercado, mostravam-se incapazes para alterar o quadro de miséria no continente. Mais grave ainda, muitas vezes somaram à miséria secular a desesperança, lançando ao fundo do poço o maravilhoso movimento de mobilização social que marcaram o fim da “Era das Ditaduras”.
Um mapa do socialismo
Alguns dos instrumentos básicos da mudança, constituídos com sangue e dor sob os regimes autoritários, tais como os partidos de resistência e os sindicatos reivindicativos, deixaram-se arrastar nesta crise. Muitos ainda estavam presos à experiência do socialismo “real” – mesmo que com outro conteúdo, muitas das práticas “soviéticas” ainda eram presentes nas elites sindicais e partidárias do continente. Em outros casos, simplesmente o 1989 implicou em forte abandono da agenda transformadora, aceitando-se a posição de gerência pacífica e conciliadora do capitalismo nacional com os movimentos socais autônomos.
Em alguns países, a própria estrutura social havia mudado fortemente, com as antigas estruturas sindicais e partidárias sendo duramente atingidas. Na Bolívia, por exemplo, a histórica “Confederación Obrera Boliviana”, COB, cedia sua liderança – totalmente atingida pelo processo de mecanização da exploração mineradora - para movimentos sociais menos classistas, mais amplos, ligados às questões de cunho étnico e ecológico, como o Movimiento al Socialismo/MAS. A mesma coisa ocorre, sob nossos olhos, no Equador, onde a CONAIE assume a liderança do processo transformador do país, ultrapassando os partidos (incluindo os de esquerda) tradicionais.
Tal “holla” esquerdizante pegou de surpresa boa parte da esquerda clássica, ainda apegada a modelos de organização marxistas ou social-democratas. A composição plural e as lutas de novo tipo – envolvendo etnia, ecologia, gênero, direito ao lazer, etc... – assumiram, ao lado do viés nacionalista e antiimperialista, um papel central no processo transformador da América Latina. Contudo há ainda, na própria esquerda, os que se envergonham em falar em “imperialismo”, considerando o conceito por demais contagiado pelo leninismo (e esquecendo-se de sua genealogia liberal), além, é claro, de se exigir do novo que brota no Altiplano andino, nas periferias de Caracas, de São Paulo ou Buenos Aires, a lógica do parlamentarismo europeu.
Na verdade a diversidade é a marca dominante da “holla” esquerdista que vivemos na América Latina hoje. O Brasil de Lula e o Chile de Lagos (e Bachelet?) optaram pela gestão do conflito entre capitalismo e movimentos sociais, com ampla concordância com as orientações macroeconômicas herdadas da hegemonia liberal anterior. Nestes casos, percebe-se uma nítida perplexidade dos movimentos socais, uma perda de velocidade e uma busca, ainda incerta, de uma base conceitual que justifique a manutenção ou o rompimento do apoio a tais governos. Já Kirchner, na Argentina, recuperou a herança ideológica – e máquina partidária – do peronismo, montando um estilo próprio – marcado por certo nacionalismo, grandes arroubos e manutenção do quadro econômico e social -, sem qualquer base partidária de novo tipo ou de apoio dos movimentos sociais transformadores. Já Chávez, na Venezuela, inicia um rápido processo de transformação de cima para baixo, marcado por forte personalismo. Contudo, a partir de 2002 – quando do golpe dos empresários contra a “Revolução Bolivariana” - percebe a fragilidade de tais métodos e inicia um amplo movimento de organização e transformação da relação Estado/Povo, ampliando e incentivando os mecanismos de participação em direção a “un gobierno de la calle”. Aí reside a originalidade e a força da revolução em curso na Venezuela. Já na Bolívia e no Equador são os “movimientos” sociais – campesinos, cocaleros, ecológicos, étnicos, etc. – que impulsionam lideranças providas de forte sentimento salvacionista, de profunda honestidade pessoal e reconhecimento de uma dívida histórica. Pode ser mesmo que o novo Partido Nacionalista Peruano, com Ollanta Humala, superando suas ambigüidades e dívidas políticas iniciais, percorra o mesmo caminho.
Os socialismos são, portanto, muitos, diversos e marcados por experiências históricas bem diversas.
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