A academia abomina a condição intelectual?
Ao analisar o declínio do pensamento crítico na América Latina, o sociólogo Atílio Borón defendeu uma tese provocadora: a retomada de um pensamento radical não pode se dar nos limites estritos da academia, pois esta se tornou um ambiente hostil à condição intelectual.
A retomada de uma linha mais agressiva de pensamento crítico nas ciências sociais e nas demais áreas das ciências humanas pode se dar nos limites estritos da academia? A questão foi levantada pelo sociólogo argentino Atílio Borón, do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), durante o XXV Congresso da Associação Latino-americana de Sociologia (Alas), realizado no final de agosto, em Porto Alegre. Após diagnosticar um declínio do pensamento crítico, especialmente na América Latina (ver “"Pensamento crítico precisa ser reconstruído na América Latina"”, Borón defendeu uma tese polêmica, oferecendo uma resposta negativa à pergunta proposta. Segundo ele, essa retomada não pode se dar nos limites citados, pela razão de que o mundo da academia hoje abomina a condição do intelectual. Para o sociólogo, as universidades latino-americanas não precisam de uma reforma, como muitos defendem, mas sim de uma revolução.
O déficit crítico, apontado por Borón, teria sido causado pela influência perniciosa de duas correntes de pensamento, o neoliberalismo e o pós-modernismo (conforme foi descrito no texto citado acima). Uma das expressões dessa influência, segundo ele, é o processo de contra-reformas universitárias em curso em vários países do continente. Uma das características marcantes desse processo, defendeu Borón, é a crescente discrepância entre a tendência de massificação do ensino e o volume de recursos disponíveis para a educação. Outra é a adoção de modelos de avaliação do corpo docente como forma de estabelecer critérios de remuneração. Pela lógica desse modelo, reduziu-se a remuneração básica dos professores, agregando-se “algo a mais” segundo o resultado de uma suposta “avaliação objetiva de desempenho”. A lógica que rege a publicação de artigos em revistas especializadas foi apontada por ele como um exemplo das distorções desse modelo.
O que é prioridade, afinal....
Hoje, observou, um artigo publicado em uma revista acadêmica norte-americana, por exemplo, vale para o pesquisador mais do que um livro publicado no próprio país, independentemente do conteúdo do artigo e do livro. O argumento é que nos Estados Unidos se faz uma ciência social de melhor qualidade e que, na América Latina, qualquer um publica um livro, afirmação repetida em outras áreas também. Assim, além da dependência dos pesquisadores latino-americanos em relação às agências de financiamento, o que define uma agenda de investigação ligada aos interesses estratégicos dessas agências, eles também passam a ter seus trabalhos orientados pela linha editorial das revistas especializadas norte-americanas e européias. E isso não ocorre só na área da sociologia, enfatizou Borón. Artigos sobre o Mal de Chagas, exemplificou, não tem grande ibope nas revistas dos EUA, com exceção de algumas na área de medicina social.
Para reforçar essa leitura, citou um estudo realizado por Russel Jacoby (autor, entre outros livros, de “O Fim da Utopia – Política e Cultura na Era da Apatia”, Ed. Record), sobre as publicações de duas das principais revistas de sociologia dos EUA, nos anos 80. Jacoby constatou que quase metade dos artigos tratava de temas relacionados aquele que seria o principal problema da sociedade norte-americana naquele período: como os norte-americanos e norte-americanas escolhem seus pares. Isso numa época em que os conflitos raciais explodiam em Los Angeles e em que a pobreza nos grandes centros urbanos adquiria maior visibilidade. Jacoby também pesquisou as publicações de revistas de ciência política, na década de 60, período da luta pelos direitos civis, contra o racismo, da guerra do Vietnã e do assassinato de John Kennedy. De 924 artigos publicados, só um tratava sobre o problema da pobreza, três abordavam o tema da crise urbana e um falava sobre a guerra do Vietnã.
Precisamos de um pensamento crítico e radical?
A partir desses levantamentos, Jacoby defendeu que a academia dos EUA havia se convertido em um gueto, onde o destino de toda uma geração de “jovens intelectuais” evidenciava uma inserção na vida universitária caracterizada pelo enfado e pela ruptura com a vida e a cultura públicas. “E nós seguimos esse exemplo”, disse Borón, indagando: “como é possível um pensamento crítico e radical sobreviver neste contexto?”. Não é possível, respondeu. Mas, afinal de contas, a que vem essa necessidade de um pensamento crítico e radical? Para o sociólogo argentino, a resposta é simples. A América Latina precisa de um pensamento desse tipo porque a situação social é cada vez mais grave, com o crescimento da desigualdade social e da pobreza, diagnóstico aliás reforçado pelo último relatório da ONU sobre a situação social no mundo (ver artigo de Marcio Pochmann, “"Objetivos do Milênio descumpridos"”).
Um pensamento crítico, acrescentou, que tenha como ponto de partida um princípio hipocrático: lutar pela saúde e pelo bem-estar do povo e da sociedade, que estão doentes. E um pensamento que procure sempre dizer a verdade e denunciar a mentira. Esta última, uma tarefa urgente, tendo em vista o processo de deslocamento da linguagem, operado nos últimos anos. Borón deu alguns exemplos desses deslocamentos. Todo mundo fala da redemocratização da América Latina, de que hoje temos governos democráticos, sem fazer nenhum tipo de questionamento a essa afirmação. Temos democracias, de fato, na América Latina? Para o sociólogo, se Aristóteles fosse vivo e conhecesse os governos do continente, os definiria como oligarquias com base no sufrágio universal e não como democracias. Quem se beneficiou, efetivamente, com o processo de redemocratização na América Latina? – indagou. Os 10% mais ricos, foi a resposta.
A metamorfose das palavras
Borón citou o caso do que ocorreu em seu país, a Argentina. No início do período pós-ditadura, a relação entre mais ricos e mais pobres era de 14 para um. Depois de vinte anos de consolidação democrática, essa distância hoje é de 35 para um. “No entanto, segue-se falando de governos democráticos. Que democracia é essa, que só acentua a desigualdade social? Isso revela a gravidade da crise teórica que vivemos, onde conceitos fundamentais não são mais discutidos”. Outro exemplo de deslocamento semântico. Há alguns anos, o Banco Mundial vem defendendo que a educação e a saúde não devem ser considerados como direitos fundamentais da população, mas sim como bens e serviços. De mãos dadas com essa posição, anda uma política de privatização de direitos básicos, onde a palavra “cidadão” vai sendo progressivamente substituída pela palavra “consumidor”. Mas as metamorfoses da linguagem não param por aí.
A expressão “transformação do Estado” foi substituída por “reforma do Estado”. A palavra “classe” desapareceu, “Nação” agora é “mercado”, “ideologia” virou “opinião pública” e “imperialismo”, “economia global”. O que fazer diante desse cenário? Borón lembra que a América Latina já deu grandes contribuições ao pensamento universal. Ele lembrou um comentário de Perry Anderson que definiu a América Latina como a região de maior criatividade e inventividade intelectual e cultural do mundo. “Na área das ciências sociais, essa produção já foi exemplar, como foi o caso da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe). Tivemos a Teologia da Libertação. Na área da educação, tivemos a pedagogia do oprimido, de Paulo Freire. Diante da crise atual, temos o compromisso de retomar essa tradição, não de um modo automático e mecânico, mas procurando construir novos modelos teóricos”.
Uma vantagem a ser aproveitada
Para Borón, temos uma vantagem única para executar essa tarefa. “Por sermos parte do quintal dos Estados Unidos, temos um horizonte de visibilidade muito maior para pensar nossos problemas do que aquele que existe na Ásia, África e Europa. Sofremos uma influência muito mais direta e quotidiana do imperialismo. É na América Latina que as contradições do sistema imperialista podem ser observadas com maior nitidez”, defendeu. Uma questão que deve ser respondida, no enfrentamento dessa tarefa, é se podemos realizar esse trabalho de reconstrução do pensamento crítico nos limites da academia, perguntou o sociólogo. A resposta veio rápida: “não podemos, porque hoje o mundo da academia abomina a condição do intelectual”. “O mundo da academia, hoje, é um mundo de carreiras, de projetos particulares, de avaliações entre os pares, é um mundo separado do resto da vida social, que não aceita o estilo de pensamento próprio do intelectual”.
Esse pensamento, prosseguiu, tem uma pretensão de universalidade que não aceita ficar trancada em disciplinas estanques. “Intelectuais têm seu público na sociedade e não somente entre seus pares. Sua missão mais importante é ser a consciência crítica de seu tempo. Hoje, a ambição da maioria dos acadêmicos é preparar sua aula, publicar seu artigo, ganhar recursos para seu projeto”, criticou Borón. Uma avaliação que certamente desagrada a muitos professores universitários que recusam esse enquadramento. Mas, para o sociólogo argentino, é esse o cenário dominante hoje na academia. E é por essa razão que ele defendeu, citando posição defendida também por Boaventura de Sousa Santos, a necessidade de revolucionar a academia. “As universidades não precisam de uma reforma, precisam de uma revolução, pois elas apresentam hoje um caráter profundamente conservador, mais conservador do que o da Igreja e das Forças Armadas, como diz Boaventura”.
O círculo mais ardente dos infernos
“E se foi possível surgir algo como a Teologia da Libertação no ambiente conservador da Igreja Católica”, acrescentou, “talvez possa surgir algo novo também na universidade”. Para tanto, entre outras coisas, ele defendeu a necessidade de vincular a agenda teórica das ciências sociais e de outras áreas das ciências humanas com a dos setores sociais que lutam para transformar a sociedade, para democratizar o Estado e o conhecimento. Quem conhece o que é a universidade hoje, para o bem e o para o mal, sabe das resistências que essa proposta enfrenta. Mas Borón defendeu-a com ênfase, algo que vem fazendo há algum tempo, para a irritação de muitos de seus pares. Talvez pensando neles, ele encerrou sua fala com uma citação livre de “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri: “o circulo mais ardente dos infernos, reservou Deus àqueles que, em época de maior crise moral, optam pela neutralidade”.
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