Para que esse quadro se altere, é providencial a entrada dessa população no ensino superior, nos grupos de pesquisa, nas instituições políticas e em todos os espaços de produção científica. Nesse contexto as ações afirmativas ganham grande importância, pois do tensionamento político que existe nesse processo, nascerá uma contrapartida teórica por parte dessa população que está entrando, que começa a ter condições de contar sua história, de mostrar sua realidade, de problematizar as produções que falam dela à distância e que são tidas como verdades científicas.
Culturalmente, as cotas raciais representam não só uma espécie de “acerto de contas histórico”, mas o começo de um novo movimento da realidade, no sentido de dar aos povos subordinados, a oportunidade de mostrar e, principalmente, de criar sua epistemologia. Essa “representação popular” tem muito mais condições de responder aos problemas da sociedade, pois quem enfrenta, existencialmente, esses problemas são os pobres, os negros e os indígenas. A ciência brasileira necessita desses movimentos para se tornar autônoma e soberana em aspectos teóricos e práticos e, também, para ter compromisso com quem, definitivamente, precisa da imediata transformação das suas condições materiais de vida. As cotas podem tirar a academia brasileira desse cenário tradicional e monopolizado em que ela se encontra. “Não são os negros que precisam da universidade, mas a universidade que precisa deles”, afirma José Carlos dos Anjos, em uma palestra proferida na semana acadêmica de história, 2007/2.
O intelectual pode assumir uma posição político-epistemológica de tentar dar visibilidade às problemáticas e às vivências dos povos explorados historicamente, já que esses ainda não acessam os espaços onde poderiam difundir seu pensamento. O intelectual comprometido tem consciência de que, quando fala sobre as populações subordinadas, ele vai estar imerso no conhecimento cientifico tradicional e dominante. Essa mesma consciência lhe permite compreender que só um conhecimento feito pela classe popular pode ser realmente diferenciado e inovador.
Ainda há, sim, na academia brasileira, uma censura a esses intelectuais orgânicos que estão ao lado das camadas populares e transportam isso para a ciência, portanto o povo explorado, além de não ter o espaço para produzir cientificamente, é duplamente discriminado no que se refere à opressão que existe a esses intelectuais críticos.
No seu livro ‘Circuito Fechado’, no capitulo dois, Florestan Fernandes relata-nos uma pesquisa feita juntamente com o professor Roger Bastide, na cidade de São Paulo, onde foram realizadas observações, seminários e entrevistas com a comunidade negra, a fim de problematizar a questão racial no Brasil. Ele aponta os resultados que essa pesquisa alcançou, quando conseguiu, de certa forma, dar visibilidade científica para a dignidade histórica dos movimentos negros, para a herança intelectual e política do negro e, ainda, denunciou a miséria racial de uma sociedade que diz viver em uma ‘democracia racial’.
“...as estruturas raciais da sociedade brasileira só poderão ser ameaçadas e destruídas quando ‘a massa de homens de cor’, ou seja, todo elemento negro, puder usar o conflito institucionalmente em condições de igualdade com o branco e sem nenhuma discriminação de qualquer espécie, o que implicaria em participação racial igualitária nas estruturas de poder da comunidade política nacional” (p.72, 1979).
Esse trecho parece extremamente atual, pois estamos passando por um conflito, dentro das universidades do país, no que se refere à implantação das cotas sociais e raciais. Com condições institucionais iguais, a discriminação pode não terminar completamente, mas ganhará uma dimensão diferente, pois com o poder de fazer política e ciência, o negro promoverá a emergência de uma nova visão cultural, e essa, gradativamente, irá constituir costumes, comportamentos e idéias que já não serão ‘secundárias ou inexistentes’ como considera a classe dominante. A partir daí, começa a brotar a força da grande intenção que se tem, que vai além da busca por uma verdadeira democracia racial, ou seja, a real transformação da sociedade. A luta pela igualdade racial é uma via para o grande objetivo, assim como a luta camponesa e a operária.
Segundo nosso entendimento ao ler Florestan, o objetivo da sua pesquisa era o de desenvolver uma consciência crítica e de classe no meio negro, pois se a luta for entendida só pelo aspecto racial, a ideologia e as formas dominantes irão se manter sempre em vantagem. E isso é mais radical para o cidadão branco comprometido, este deve compreender que a luta de classes entendida de forma isolada ou alienada é inócua, já que nessa luta pode haver elementos de discriminação e de impedimento da luta racial.
Existe, segundo Florestan, uma ligação dialética entre as lutas raciais e a luta de classes, mas as lutas ainda não estão unidas no que tange à prática social. Ele propõe a superação dessa situação, pois a interligação entre essas lutas é vigente em nossos dias. O povo pobre e explorado, trabalhador, sem oportunidade e violentado no seu íntimo pela negação das suas necessidades básicas, esse quer não só a mudança do quadro racial hipócrita brasileiro, mas também deve perceber que isso só ocorrerá com as mudanças na sociedade, com a revolução que desestabilize os meios de produção privados, que quebre com a cápsula branca e burguesa das instituições brasileiras em todas as instâncias.
O autor afirma que, com a pesquisa, o negro encontrou não só um ponto de apoio, mas também o ‘prestígio da ciência’. Esse prestígio vai seguir sendo o ‘possível’ enquanto não ocorrer o movimento de tomada, por partes das populações exploradas, dos espaços institucionais de construção de ciência. Já não se aceita só o prestígio, quer-se a chance de produzir e não de ser somente representado. Essa situação histórica que vivemos, de luta real por acesso, é fruto de todo compromisso e trabalho de intelectuais como Florestan, que foram contra as teorias e ideologias dominantes e marcaram suas produções pela defesa de uma transformação radical dessa sociedade desigual e de todas ramificações que advêm dessa desigualdade.
O controle social e político das instituições e dos meios de comunicação é tão fechado pela burguesia que essa não só decide sobre os caminhos da sociedade, como também escolhe quais os processos de tensão social podem surgir, salvam-se alguns focos minoritários de resistência em algumas realidades. A repressão está montada, primeiramente, como estrutura e depois, materialmente, pelos aparelhos repressivos do estado, de modo que uma luta racial que reivindique a transformação da ordem social seja literalmente enfrentada e atacada por todos os lados. Isso está posto de forma muito clara, vejamos o exemplo das cotas, que é uma luta por acesso ao ensino superior e que provocou resistência em todas camadas do controle social.
O grande mito sob o qual vivemos não é só o da democracia racial, mas sim, o da democracia como um todo. Esta 'organização democrática' em que vivemos, é democrática para poucos, principalmente, quando se trata de direitos e do atendimento das necessidades básicas das pessoas.
No decorrer do livro citado, há uma passagem onde o autor nos explica que a formação social brasileira ocasionou um violento processo de dominação política e econômica.
Essa modalidade de revolução capitalista forçou as elites das classes burguesas, privadamente e através do estado, a adotar formas de dominação econômica, sócio-cultural e política, especificamente, autocráticas e ultraconservadoras. Em conseqüência, o movimento que, em certos países da Europa e nos Estados Unidos gerou uma ordem burguesa aberta e democrática, no Brasil produziu uma ordem burguesa fechada e autocrática (p. 79, 1979).
Sendo assim, os espaços que os inconformismos e os movimentos sociais tiveram foi quase nulo. O negro brasileiro, sem a possibilidade de organização, passa a ser cooptado não só pelo mercado, mas também pela lógica do capitalismo, começando a entender que a grande questão agora é tentar, isoladamente, a elevação do seu patamar social. Ascensão econômica é entendida como mudança da situação social e racial, e o sucesso pessoal torna-se o grande objetivo, esse é o quadro que a população negra e despossuída encontra no Brasil, no pós décadas de 30 e 40, do século XX, período que Florestan analisa em seu livro.
O Estado se encontra de tal forma fechado que o negro internaliza valores e comportamentos capitalistas que não condizem com a sua história e seu verdadeiro compromisso de classe. A organização da sociedade é tão circunscrita e totalizante que os movimentos coletivos perdem o sentido na consciência de quem deveria construí-los. Na ditadura da minoria e do capital, não há brechas para um inconformismo crítico por parte das classes populares, com esse movimento da sociedade, a consciência racial e de classe se dilui em meio a um conjunto de valores e de consensos burgueses que naturalizam a discriminação e a desigualdade.
A estrutura social dominante impede que apareça toda e qualquer organização social que a desestabilize, restando como única possibilidade de inconformismo, os momentos de ascensão econômica, social e cultural do negro. Isso é parte do desenvolvimento histórico que nosso país vive, que deve existir, ainda que não vá eliminar as desigualdades sociais e raciais.
As dimensões racial e social de luta sofrem, segundo o autor, de um estado de separação ocasionado pelo desvio que o sistema capitalista estabelece nas organizações sociais e, por conseguinte, nas consciências populares. E ele afirma que:
Mantido semelhante paralelismo, qualquer padrão de relação racial igualitária e todo ordenamento de 'raça' e 'classe' em bases democráticas serão simplesmente inviáveis. Uma maior massa de negros se integrará nas várias classes existentes. Mas isso não romperá com as contradições raciais herdadas do passado e incorporadas ao regime de classe (p. 83, 1979).
Como já havíamos dito, existe uma ligação dialética entre as lutas de classe e racial, e a separação dessas esferas é estrategicamente feita, quando a ordem social pode ser alterada. Um olhar historicamente otimista pode surgir quando esses elementos, que são intimamente ligados na teoria, ganharem uma dimensão prática de possibilidade e não de contingência. Deve-se constituir meios pelos quais a sociedade se abra, no sentido de oportunizar a eclosão de movimentos populares que denunciem a exploração e a discriminação que sofrem.
Para a concretização de uma luta racial e de classe, conscientemente crítica, devemos trabalhar para que se desenvolva uma base material, psicológica e moral adequada. Com isso quero dizer que a nossa sociedade nos esconde essa base, não que ela não exista. Esconde através dos monopólios dos meios de comunicação, do sucateamento dos serviços públicos que deveriam atender às necessidades básicas do povo, dos processos repressivos do estado e das corporações econômicas detentoras dos meios de produção do campo e da cidade.
Portanto, só a conscientização puramente idealista não vai nos levar a nada. Sem que se mexa, de modo prático, em todos os elementos impeditivos das mudanças necessárias da realidade, não há esperanças de transformação. Com o engessamento da sociedade, nos moldes em que ela se encontra, as lutas e as inquietudes sociais ganham outras características, que vão ao encontro dos movimentos que possam ser aceitos pela sociedade de classes, enquanto esta se mantém intacta.
A entrada de grupos negros minoritários nas classes média e alta é um fenômeno que deveria se dar e está ocorrendo no processo histórico brasileiro, isso é importante, porém ocorre de forma extremamente dispersa e limitada. Esse fato é muito utilizado como exemplo pelos intelectuais do capital, na tentativa de justificar a desigualdade e promover a teoria da democracia racial e social. Essa ascensão social a que nos referimos deve acontecer e é considerável, entretanto, não se pode contentar-se com isso, haja vista que a imensa maioria do povo negro continuará em grande desvantagem, pois além de negro é também pobre e explorado.
No final do capítulo 2, do livro que venho citando, Florestan nos aponta que, com a industrialização maciça e com as relações que o povo negro vai constituindo, principalmente, nas grandes metrópoles, sua situação social mudou de padrão. Conforme o autor:
Os pontos de concentração das oportunidades econômicas, educacionais, intelectuais e políticas ainda são fracos ou débeis demais para quebrar as linhas tradicionais de desigualdade racial ou para 'fazer o branco engolir o seu orgulho'. Todavia, o negro deixou de ser o espectador à margem da vida e da história. (p.86 e 87,1979).
Entendi que essa mudança não significa uma transposição de classe ou superação da situação racial do país, mas uma nova caracterização, principalmente, do trabalho que passou de escravo e isolado para assalariado e coletivizado.
Se o passado não está extinto, as cicatrizes não dominam nem governam mais a vida do negro; e tão pouco o forçam a procurar o isolamento autoprotetivo, pelo qual se destruía, e a converter a desorganização pessoal, familiar e social em um multiplicador incontrolável de sua 'desgraça coletiva'.(p. 88, 1979).
Esse trecho retrata a opinião do autor de que a condição material do povo negro se alterou com o estabelecimento de novas relações espaciais e humanas. Ele se mostra consciente da necessidade de se fazer outras pesquisas sobre o tema, pela volatilidade dessas questões e por sua pesquisa ter sido feita somente na cidade de São Paulo, o que dificulta qualquer tentativa de generalização. Por fim, além de um relato, o texto em discussão é uma análise sociológica que nos provoca, no sentido de expor contradições de um período histórico que está muito vivo na contemporaneidade, de modo que vemos, na leitura, reflexões sobre problemas que estamos enfrentando no nosso cotidiano militante.
Ao estabelecer relações entre uma palestra organizada pela semana acadêmica da história, que teve como tema ‘A questão do debate racial’, e a leitura do texto de Florestan, desenvolvi essa resenha crítica. Fui escrevendo ao mesmo tempo em que lia e, ao passo em que eu articulava uma contribuição, na seqüência da leitura, notava que, de uma forma ou de outra, meu texto era contemplado no do autor, o que indica certa coerência na interpretação. Estou contando esse fato porque foi interessante a nitidez como isso aconteceu.
Referência Bibliográfica:
FLORESTAN, Fernandes. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o ‘poder institucional’. São Paulo, HUCITEC, 1979. 2.ed.
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