, por Marcelo Salles
A violência policial e a incipiente resistência popular no Complexo do Alemão, ocupado há quase dois meses pela Polícia Militar do Rio de Janeiro
Fotos: Latuff/2007 |
Complexo do Alemão, Rio de Janeiro . |
Sadraque Santos é fotógrafo. Mora no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro, e se formou recentemente na Escola Popular de Comunicação Crítica, realizada pelo Observatório de Favelas. Assim como a esmagadora maioria de seus vizinhos, Sadraque precisa sair de casa para trabalhar. Mas o que deveria ser uma atividade banal tem sido um verdadeiro tormento desde que a polícia ocupou o conjunto de doze favelas do Complexo do Alemão, que abrange os bairros da Penha, Inhaúma, Bonsucesso, Ramos e Olaria e reúne 200 mil pessoas.
Todo dia Sadraque pega sua câmera fotográfica, mochila e equipamentos, como lentes, pilhas, baterias, cartões de memória e outros necessários para os cliques que lhe garantem a subsistência. Por três vezes tentou sair para trabalhar, mas foi impedido pelos policiais.
— Na primeira, tive que dar a volta e sair por outro lado. Em outra, tentei dar a volta, mas tava tudo fechado. Tive que esperar até onze horas da manhã para ir trabalhar. Nosso “di reito de ir e vir” nunca é respeitado.
Com apoio do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e da Força Nacional de Segurança, a Polícia Militar ocupa o Complexo do Alemão desde o dia 2 de maio. A concentração é na Vila Cruzeiro, onde estariam escondidos os bandidos que mataram dois policiais militares em Oswaldo Cruz, segundo a versão da polícia. Até o dia 6 de junho, os números oficiais davam conta de 17 mortos e mais de 50 feridos na região. Trata-se de uma das ocupações mais longas da história do Rio.
Desta vez chamaram a atenção as barricadas levantadas para impedir a entrada do “caveirão”. Alguns disseram que foram os bandidos, outros levantaram a hipótese de que moradores tomaram a iniciativa. Sadraque explica:
— É a rapaziada que coloca para impedir a entrada do “caveirão”. Quem coloca são os caras, mas se perguntar pro trabalhador, ele vai concordar. Porque quando o “caveirão” vem na favela, mata trabalhador também. Fizeram na Penha, na Fazendinha e no Complexo do Alemão. Tá morrendo muito inocente.
Mentira perdida
A polícia não assume a responsabilidade pelas mortes, geralmente atribuídas aos bandidos ou à mais nova instituição da República, a bala perdida — que não tem assessoria de imprensa para se defender. O próprio Instituto de Segurança Pública, órgão vinculado à Secretaria de Segurança Pública, divulgou estudo que põe em dúvida a versão oficial. “Chama a atenção o fato de 68,4% das vítimas serem do sexo masculino e 31,6% do sexo feminino, quando se considera que a ‘bala perdida’ constitui um evento considerado aleatório. Sobretudo, diante do fato de que a distribuição da população do Estado do Rio de Janeiro, segundo o Censo 2000 do IBGE, é de 48% de homens (6.900.312) e 52% de mulheres”.
Segundo o Sadraque, o argumento mais frequentemente usado pela polícia para impedir que os moradores saiam de suas casas para trabalhar é o de que eles estariam servindo como informantes para quadrilhas de outras favelas.
— Eles alegam que a gente estaria levando informação para outras comunidades, — afirma, para depois completar:
— Pior é aquela declaração do comandante das operações em áreas especiais. Ele tem falado na imprensa que traficante está dando tiro em morador para desestabilizar o trabalho da polícia. Isso é uma covardia. É uma covardia. Porque é uma questão lógica. Quando você mora na comunidade, sabe que tem certas regras. Se isso fosse verdade, todo mundo ia sair da favela, nem que fosse para morar na rua. O traficante sabe que nessas ocupações da polícia o morador é importante pra ele, — afirma o fotógrafo.
Quando a polícia promove operações deste tipo, é comum ouvirmos versões conflitantes. O discurso oficial, amplificado pelo monopólio da imprensa, garante que são os bandidos que destroem geradores de energia. Sadraque diz o contrário: é a polícia quem manda cortar não apenas a energia elétrica, mas também a água e as linhas telefônicas de todos os moradores. A versão do fotógrafo é partilhada pelos demais moradores, que denunciaram este e outros abusos no dia 24 de outubro de 2006, durante o 1º Fórum de Discussão Contra a Violência e em Defesa da Vida, realizado dentro de uma metalúrgica desativada na Favela da Grota, no Complexo do Alemão. Na ocasião, estiveram presentes cerca de 400 moradores.
Melhor para quem?
Naquela ocasião, o principal alvo das denúncias foi o Batalhão de Operações Especiais (Bope). Treinada para ser uma das melhores tropas em combate urbano do mundo, os métodos do Bope dificilmente seriam tolerados caso fossem empregados em áreas de “classe média” ou alta. Apenas para se ter uma idéia, uma das músicas entoadas durante o treinamento desses policiais é a seguinte: “Homem de preto, qual é sua missão?/ Entrar na favela e deixar corpo no chão./ Homem de preto, o que você faz?/ Faço coisas que assustam o satanás”.
Segundo relatos de moradores, a truculência da polícia é o principal problema. Escolas são fechadas, estudantes ficam presos dentro de casa e muitas pessoas são impedidas de trabalhar. Mas isso não é o mais grave.
— A maioria dos moradores, inclusive eu, reclama da atitude da polícia, que costuma usar de covardia com os moradores. Covardia mesmo! Covardia mesmo! Coisas do arco-da-velha, se eu contar você nem acredita.
Nesse ponto da entrevista, Sadraque hesita:
— Eu insisto em saber o que a polícia está fazendo, com apoio do monopólio da imprensa e do governador Sérgio Cabral.
O fotógrafo, enfim, desabafa:
— Invadindo casa de morador, sacaneando morador, mexendo com filha dos outros. Teve uma vez que enfiaram uma chave de fenda nas costas de um morador. Estão fazendo coisas do mesmo nível dos bandidos. Rola até estupro, cara!
Houve um tempo em que os moradores de favelas temiam represálias. Não abriam a boca. Mas as coisas parecem estar mudando.
Termino a entrevista com Sadraque Santos depois da meia-noite de 6 de junho. Em pouco mais de cinco horas ele estará de pé. Às seis da manhã vai pegar sua câmera fotográfica, mochila e assessórios e seguir para mais uma jornada de trabalho. Há oito meses 400 pessoas se reuniram dentro do Complexo do Alemão durante o Fórum Contra a Violência. Foi a primeira vez na história em que a localidade decidiu quebrar o silêncio sobre os abusos cometidos pela polícia. A resistência do proletariado carioca começa a delinear novos enquadramentos na fotografia da cidade.
E chegou o tiroteio
(segunda entrevista)
Depoimento de Wanderley da Cunha, morador da Favela de Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde frequentemente há troca de tiros entre policiais e bandidos. Wanderley é animador cultural e integra a Rede Contra a Violência, que organiza moradores de bairros proletários.
O que acontece quando começa o tiroteio?
— Normalmente a guerra, o tiroteio, acontece entre a polícia e os traficantes. Quando acontece troca de tiro entre quadrilhas rivais, mais ou menos os traficantes ficam prevenidos e geralmente avisam aos moradores. Aí tem tempo de prevenir. Quando é incursão policial, as pessoas são pegas de surpresa. Geralmente é de manhã ou à tarde quando há crianças indo e voltando da escola, pessoas indo para o trabalho. E é uma coisa muito aterrorizante. Principalmente quando há uma entrada da polícia acompanhada do Caveirão. Não fica ninguém na rua. Porque o Caveirão é terror mesmo, uma coisa simbólica. Fica um clima de guerra que a gente só vê na televisão.
Aí você tem que ficar em casa até o tiroteio acabar?
— Normalmente as pessoas são surpreendidas. Aí tem que se abrigar no lugar mais próximo. Num bar, ou na casa de algum vizinho, da pessoa mais próxima. E quando tem uma troca de tiro, um confronto, as pessoas ficam preocupadas. As pessoas em casa ficam apavoradas, porque estão com os filhos na rua, indo para a escola. O marido, ou filho, ou irmão estão indo para o trabalho e as pessoas não sabem o que está acontecendo. Nunca se sabe quem foi baleado: um menino, uma dona de casa, um estudante, um traficante, um operário. Até você ter certeza que seus parentes e amigos que estão bem é um desespero. E uma troca de tiro, um confronto, acaba com o humor de todo mundo para o resto do dia. Agora, você imagina esses 40 dias de confronto na Vila Cruzeiro (Complexo do Alemão), o que vai fazer na cabeça das crianças, dos moradores. Quando acabar a chamada guerra lá da Vila Cruzeiro, a imprensa vai embora, a polícia vai embora, e os moradores vão sofrer muito. O psicológico... Os moradores, as pessoas que foram baleadas, para se recuperar... As crianças, por exemplo, dificilmente aquelas crianças vão ser aprovadas, vão conseguir passar de ano. Os professores não vão querer dar aula... Sempre que tem um confronto como esse, que dura muito tempo. Depois que acaba, as pessoas não se interessam mais pelo que fica. Ninguém presta mais atenção. Muitas vezes as conseqüências são bem mais dolorosas depois do confronto.
Na hora da troca de tiro o que passa pela sua cabeça?
— Olha, eu como sou militante e faço parte da Rede Contra a Violência, uma das pessoas ali preocupada com isso. Instintivamente a gente fica logo preocupado em saber quem foi baleado, em saber quais foram os policiais envolvidos no tiroteio, e o que passa pela cabeça, na hora, é pensar em mudar as coisas. Mas quando a gente vê um amigo, ou filho de um amigo baleado ou morto, bate um desânimo. Um sentimento de impotência, de que não está valendo a pena o que a gente faz. A gente continua vendo as coisas acontecerem no dia-a-dia enquanto luta. Às vezes a gente até vê a coisa piorar, mesmo com a nossa luta. Aí bate um desânimo, bate um desespero. Aí perde vontade de ir a reunião, de organizar movimento. Porque vive um clima de tensão, clima agressivo, clima de violência que fica no ar.
E o que passa na cabeça de uma pessoa que não está envolvida com a militância?
— As pessoas não acreditam que alguma coisa possa mudar. Então as pessoas acabam se acostumando. A grande maioria fica habituada, se preparando para toda semana saber que alguém morreu. Quando a gente chama para participar de reunião da campanha contra o Caveirão, as pessoas não vão, têm medo de sofrer represália da polícia. As pessoas nem acreditam mais em eleição, em política. As pessoas não acreditam. Agora, você vê nos olhos das pessoas, no humor delas, achando que elas estão acostumadas, mas não estão. As pessoas cada vez mais sofrem. E aí, as pessoas cada vez mais bebem, e quanto mais sofrem, mais procuram baile funk, pagode, consomem drogas, que é uma maneira de segurar a onda um pouco. As pessoas estão cada vez mais desesperadas, desesperançadas. É uma desesperança contida, que fica dentro das pessoas e acaba explodindo muitas vezes na violência, mas nunca dirigida contra quem está causando o verdadeiro sofrimento para a gente.
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