13/03/2005
Ignacio Ramonet
Por motivo do centenário do seu nascimento, acaba de se inaugurar na Biblioteca Nacional de Paris uma grande exposição consagrada a Jean-Paul Sartre (1905-1980), sem dúvida o filósofo mas influente da segunda metade do século XX. Para mim foi um autor capital. Li-o desde muito jovem. Devia ter uns treze ou catorze anos quando na livraria Colonnes de Tânger comprei Le Mur (O Muro); uma edição de bolso com capa ilustrada em cores esverdeadas onde uma enorme mão arranhava uma parede de cimento, e as unhas deixavam dramáticos sulcos… Este livro, como se sabe, reúne cinco relatos curtos. O primeiro deles – “O Muro”, que melhor deveria chamar-se “El Paredón” [“Muro de Fuzilamento”] – dá o título ao conjunto, e conta um episódio da guerra civil espanhola no qual três homens vão morrer fuzilados. Sartre escreveu‑o em 1939. Era o seu segundo livro de ficção depois de A Náusea que tinha publicado no ano anterior.
Com estes dois livros, e depois durante a ocupação de França pelos nazis, com as suas populares obras de teatro (As Moscas e A porta fechada) fez-se célebre, antes inclusive de o seu ensaio filosófico principal, O ser e o nada, editado em 1943, fosse lido de verdade. Ao findar a guerra e até ao final dos anos 1970, Jean‑Paul Sartre transformou‑se no filósofo central do pensamento francês. A sua teoria do existencialismo invadiu tudo, até se converter numa moda parisiense com os seus chefes de fila, o próprio Sartre, claro, mas também Albert Camus ou Maurice Merleau‑Ponty, as suas revistas como Les Temps Modernes, os seus cantores como Juliette Greco, os seus lugares míticos como o café Flore e o bairro Saint-Germain-des‑Près, etc.
Para qualquer jovem inquieto dos anos 1950, em que começaram as grandes lutas anti‑coloniais e a emancipação dos povos do terceiro mundo, Sartre era uma referência inevitável. «O ser humano esta feito de liberdade, dizia, a liberdade é o tecido da existência humana». Ele desenvolveu e afinou, depois de Gramsci, o conceito de “intelectual comprometido”. E levou‑o à prática em todos os terrenos da batalha das ideias: jornalismo, conto, novela, teatro, ensaio, etc.
Lutou contra o anti-semitismo, denunciou os campos de concentração soviéticos, defendeu a independência da Argélia, solidarizou-se com os combatentes anti‑franquistas em Espanha, ajudou a revolução cubana, militou pela causa feminista e contra o imperialismo dos Estados Unidos e a guerra de Vietname, defendeu os estudantes em Maio do 68, condenou a intervenção soviética na Checoslováquia, e recusou o prémio Nobel de literatura.
A primeira vez que o vi, no princípio dos anos 1970, ia ele caminhando com Simone de Beauvoir pelo boulevard Raspail, perto do café Dôme, em Montparnasse, numa manhã de primavera. Ela sustia‑o por um braço, porque tinha sofrido um ataque e estava quase cego. Não podia ler nem escrever. Detiveram-se no quiosque da esquina onde eu estava a consultar a imprensa. Simone aproximou‑se para comprar o diário Liberation que acabava de se fundar e no qual eu colaborava então. Estive um momento a olhar Sartre em carne e osso. Ainda que estivéssemos em Junho, ia muito arroupado, envolvido num enorme casacão forrado de falsa pele. Era um homem cabeçudo de diminuta estatura – devia medir muito pouco mais de um metro e meio –, de fealdade lendária, com umas espessas lentes defumadas que lhe devoravam grande parte do rosto e deixavam perceber o terrível estrabismo do seu olho direito, e uma dentição desbaratada, quase grotesca, muito marcada por decénios de fumaça de cigarros e de cachimbo.
Disse-lhe, com um sorriso de admiração e de ternura: «Bons dias, senhor Sartre». Movendo a cabeça da maneira insegura como fazem os cegos, tratou de localizar‑me, disse-me com a sua bela voz de timbre metálico e viril (principal arma de sedução juntamente com a sua inteligência): « Bons dias, jovem!» E levando aos seus lábios o cigarro Gitane (sem filtro) que levava na sua mão direita, estendeu esta no vazio, um pouco a esmo, para que a tomasse e apertasse entre as minhas. Afastaram‑se. Fiquei a meditar. Recordando aquele episódio de um poeta espanhol que, em Paris, tinha estreitado uma vez a mão de Verlaine a quem tanto admirava e que, para não apagar jamais essa recordação, decidiu nunca mais lavar as mãos…
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