segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Ler a linguagem do inimigo

por Ricardo Alarcón [*]

Cartaz cubano. Alla Glinchikova, do Instituto de Estudos sobre a Globalização e os Movimentos Sociais, da Rússia, referia-se neste fórum à utilização da linguagem do inimigo. Há que conhecer essa linguagem, e também as ideias do inimigo.

Concordo em que não haverá no século XXI um só socialismo e sim vários socialismos, que partem das experiências anteriores e que sem dúvida devemos estudar a fundo. Mas não basta que nós os de esquerda, os socialistas, os revolucionários e os que assim pensam aprofundem e meditem só entre si. Para entender o que ocorreu na União Soviética há que ler, por exemplo, as memórias de Margaret Thatcher – The Path to Power e The Downing Street Years –, que vejo raramente citada nos círculos da esquerda e que falam directamente na linguagem do inimigo.

A senhora Thatcher explica quão decisiva foi a estratégia acordada entre ela e Reagan, que provocou uma viragem na Guerra Fria e a corrida armamentista com a chamada Guerra das Galáxias. Provocaram uma ferida mortal na URSS. Obrigaram a sociedade soviética, que queria ser socialista, a investir desenfreadamente na defesa. Que outra coisa podia fazer a URSS, se aquilo que lhe vinha por cima era uma guerra nada menos que a partir do espaço? Conseguiram identificar as lacunas que teria a sociedade e descobriram que tinham de obrigar os soviéticos a desperdiçar recursos e inteligências em objectivos que não eram socialistas. A senhora Tatcher diz que a guerra das galáxias a princípio pareceu-lhe uma loucura, mas depois compreendeu que este era um objectivo principal a fim de por fim ao socialismo soviético e à Guerra Fria. E assim foi.

O que quero dizer com isto? Que não só é útil olharmos para nós mesmo, a partir de nós mesmos, como também estudar o que o adversário faz e diz nesse mesmo momento. Isto tem outro problema e em certas ocasiões um enorme desafio para todos nós: por vezes há que esperar décadas para conhecer textos chaves onde se pormenoriza o que faz o inimigo, assim como o que deve estar a fazer agora mesmo.

Quando analisamos o mundo hoje gosto muito de recorrer a um documento em inglês elaborado pela Agência Central de Inteligência (CIA): por muito poder de imaginação que tenham os revolucionários, é bom ver como a CIA vê o mundo e o futuro. Numa análise que a Agência tornou pública, intitulada Tendências global para 2010 (Global Trends 2010), que no ano 2000 actualizaram até 2015 (Global Trends 2015) , projectaram quatro cenários da possível evolução do mundo, tendo em conta todos os factores: económico, político, tecnológico, ...

Estes quatro cenários, com diferentes possibilidades de desenvolvimento do capitalismo neoliberal globalizado, chegam a um mesmo ponto: a influência dos Estados Unidos da América continuará a declinar. No entender dos analistas da CIA, que tiveram em conta informações de muito diversas fontes científicas do planeta antes dos famosos atentados do 11 de Setembro de 2001, o mundo já vivia no declínio do poderio norte-americano e previam para o futuro diferentes cenários, todos com essa característica comum.

Estou certo de que esse relatório foi lido pelos conservadores norte-americanos, os mesmos que elaboraram a política de uma administração que por vezes é julgada com certa rudeza – como irresponsável, aventureira, etc. Não, estão a cumprir uma missão: tentar deter esse declínio que eles sabem inevitável e reverter – digamos à moda antiga – "a marcha da História".

AUTOCRÍTICA DO FIM DA HISTÓRIA

Retornemos ao idioma do inimigo e citemos pessoas que não são da nossa própria filiação ideológica. Quero mencionar Francis Fukuyama, possivelmente o homem mais citado na última década do século passado. Todo o mundo fala dele. Nem todo o mundo leu o seu livro mais famoso, mas todos conhecem a sua tese fundamental. Quantos leram os seus estudos posteriores ao seu célebre O fim da História ? Em 1992 ele publicou este ensaio, mas Fukuyama não teve que esperar muito tempo para fazer uma séria autocrítica e uma crítica ao pensamento neoconservador, ao assinalar que o mundo não podia ser governado. Bastaram dez anos a esse burocrata norte-americano para reconhecer o erro e gravidade dessa política, para admitir que apesar de haver emergido vitoriosa e como única superpotência, os Estados Unidos não podem governar, como ele próprio acreditava nos inícios dos anos 90.

Outro investigador que não costuma ser mencionado nos círculos da esquerda é o senhor Jospeh Schumpeter, auto-norte-americano que em 1942 publicou um livro – Capitalism, Socialism and Democracy – onde formulou uma teoria que lhe acarretou muitíssimos carolos dos seus colegas académicos. Ainda não lhe perdoam sua declaração desconcertante: "uma forma de socialismo surgirá inevitavelmente da também inevitável decomposição do capitalismo".

A única discordância que tenho com o famoso prognóstico de Schumpeter é sobre a quantidade das formas de socialismo que surgirão. Inclino-me antes a pensar que não surgirá uma e sim umas quantas formas de socialismo.

Ele imaginou a situação actual: a vitória final do capitalismo à escala global e que, quando chegasse a essa fase, inevitavelmente manifestar-se-ia a sua decomposição e inevitavelmente uma forma de socialismo. Uma das grandes ironias do século XX é que a confrontação Leste-Oeste, a grande batalha que significou a Guerra Fria – que nunca chegou a desencadear-se mas que pôs o mundo em constante inquietação –, foi ganha pelo imperialismo norte-americano, e contudo ao ganhá-la começou a ascender a sua fase de derrota.

Na América Latina, por razões que foram aqui mencionadas, vivemos uma etapa que nos permite não só avançar com formas independentes do socialismo como somos um ponto de referência para outros que também começam a dar-se conta de que não foi tão real a vitória do capitalismo, nem se havia detido a história tão abruptamente como disse Fukuyama.

JULIO ANTONIO MELLA

Se aprofundarmos na nossa história vamos verificar que na nossa região contamos precisamente com as expressões mais autênticas do socialismo, com uma visão criadora, anti-dogmática, inclusive nos dias iniciais desse modelo na Europa. Impressionou-me muitíssimo a leitura do artigo que, após a morte de Lenine, lhe dedicou Julio Antonio Mella – principal dirigente e fundador do Partido marxista-leninista de Cuba. Publicou-o em Fevereiro de 1924 num jornal do Partido Comunista de Cuba e intitulou-o "Lenine coroado". Ninguém no nosso país, naquele momento, prestou-lhe tal tributo nem tantas homenagens a Lenine como Mella. Ele estava a falar de uma figura que indubitavelmente respeitou e quis muitíssimo, mas advertiu que não aspirava reproduzir em Cuba a experiência bolchevique, que não queria comunistas que seguissem a linha de outro partido, que o que se propunha seu Partido era contar com seres humanos pensantes, que não fossem dirigidos, nem domesticados, nem disciplinados por outros, e sim que estivéssemos "sempre a pensar com a nossa cabeça", "seres pensantes, não seres conduzidos. Pessoas, não bestas". Este rapaz – ainda não havia completado 21 anos – disse que Cuba queria uma revolução socialista, mas à cubana.

Além desta figura, há que recordar o paradigma dos revolucionários latino-americanos, José Carlos Mariátegui, que também exprimiu algo semelhante há décadas: que o socialismo na América não será um decalque nem cópia e sim criação heróica. Se é criação, não pode ser um só, tem que ser diverso, deve fundar com heroísmo um socialismo aqui e outro acolá. É o que estamos vivendo, como afirmou o presidente Rafael Correa: "não uma época de mudança e sim uma mudança de época", que tem a ver com esta fase declinante do imperialismo norte-americano.

Faz-nos falta uma teoria para a fase actual do capitalismo globalizado neoliberal, que tenta deter sua queda e reimpor-se sobre o mundo.

Por que os Estados Unidos gastam hoje muito mais em recursos militares do que todos os países da Terra juntos, mais do que quando havia Guerra Fria? Por que essa incessante produção de novos e novos instrumentos de morte de guerra? Para atacar a União Soviética? Para atacar o Eixo do Mal? Claro que não. Por um lado, é o reflexo de uma economia enferma numa sociedade enferma – a Thatcher sabia que aquele armamentismo irracional precipitaria a destruição da URSS, enquanto para os Estados Unidos e a Grã Bretanha significava mais lucros para os monopólios e a indústria armamentista. E, por outro lado, se se produzem estas ofensivas tão violentas que copiam o fascismo e reproduzem os mecanismos da época da Guerra Fria é porque estão na defensiva, cercados diante do avanço dos povos.

Sem dúvida faz-nos falta uma teoria para a fase do capitalismo neoliberal que tenta deter a sua queda. Vivemos num mundo que nos oferece muitas possibilidades, mas que também tem grandes riscos, ilustrado com infinitas evidências no actual regime norte-americano. Não sei o que se vai passar nas próximas eleições, mas o que não tenho a menor dúvida é que o senhor que hoje está na Casa Branca não chegou ali por acaso. É o resultado da acção dos grupos de poder que existem nos Estados Unidos, cuja mentalidade deveria causar pelo menos ansiedade e grande preocupação a todo o ser humano minimamente responsável.

ONDE ESTÁ LUIS POSADA CARRILES?

A América Latina é testemunha de como, para impedir a queda, são capazes de recorrer a qualquer coisa. Cometeria uma falta imperdoável se não mencionasse porque digo isto. A jornalistas que me fazem as perguntas de sempre – como está Fidel?, quando volta ao poder?, etc – respondo-lhes: onde está Luís Posada Carriles? É o que deveriam perguntar e, a propósito, denunciar que há mais de dois anos a República Bolivariana da Venezuela solicitou a extradição deste homem, que prossiga o julgamento que aqui se fazia.

Perante as duas possibilidades que tem diante de si – extraditá-lo para a Venezuela ou julgá-lo imediatamente nos Estados Unidos, como obrigam os acordos internacionais – Bush descobriu uma fórmula melhor: ignorar o assunto, não fazer caso. Algum dia pode ser que conheçamos alguns documentos escritos na língua do inimigo onde estes senhores explicam como foi que se conluiaram na obscuridade para salvar Posada Carriles. Que significa isso na prática? Simplesmente dizer a Cuba, a Venezuela e aos demais povos desta região que o que torturou, o que assassinou, o que mandou matar tanta gente inocente, vai continuar a contar com o favor dos Estados Unidos. E ao mesmo tempo apresenta-nos a outra face da moeda: a situação dos cinco cubanos, com quadro prisões perpétuas e 75 anos de prisão, por descobrir os planos dos Posadas Carriles que eles protegem e que se dedicam a exercer o terrorismo contra os nossos países.

The New York Times publicou na semana passada as declarações do Departamento de Justiça acerca de Leandro Aragocillo, um norte-americano de origem filipina condenado por espionagem. Apreenderam-lhe nada mais nada menos que 733 documentos secretos da Casa Branca, do Pentágono, do Departamento da Defesa e de outros lugares. Condenaram-no a dez anos de prisão. Tenho compatriotas meus condenados com quatro prisões perpétuas sem que lhes houvessem encontrado nem um pedacito de papel comprometedor. Condenaram-nos sem haver apresentado provas contra eles, e além disso depois que no tribunal escutaram os depoimentos das testemunhas que ali compareceram, que disseram que não haver ali espionagem alguma. A moral: cadeia perpétua se tu vais vigiar Posada Carriles, dez anos de prisão se tu realmente praticas a espionagem, inclusive na Casa Branca.

O Departamento da Justiça acrescentou uma frasezinha que me emocionou, francamente: dez anos é a condenação máxima: se tiver bom comportamento na prisão, o filipino pode sair muito antes.

Nossos cinco companheiros são professores nas suas prisões: ensinam inglês, matemática, espanhol. Trabalham nos escritórios dessas prisões com uma disciplina exemplar. Jamais foram criticados por mau comportamento, mas estarão encerrados quatro vidas e 75 anos só por combater o terrorismo.

Qual é a mensagem para os nossos povos? Foi implantado nos Estados Unidos um regime que é capaz de recorrer a tudo. Não são absolutos, mas têm força suficiente para destruir a Terra e destruir todos nós. Por isso, num momento de auge das aspirações revolucionárias, particularmente na América Latina, num momento de grandes possibilidades e também de enormes desafios, necessitamos muito pensamento, muita reflexão e sobretudo muita união.

[*] Presidente da Assembleia do Poder Popular de Cuba. Palavras pronunciadas no painel "La Democracia y el socialismo del Siglo XXI". VI Cumbre Social por la Unión Latinoamericana y Caribeña, 1 de Agosto de 2007, Caracas.

O original encontra-se em Cuba Debate .


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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