MEIOS DE COMUNICAÇÃO
O receituário da burca
Runildo Pinto (*)
O poder voraz da mídia, orquestrada em âmbito nacional pela Rede Globo e outros grupos de comunicação, obriga-nos a pensar no papel que os meios de comunicação desempenham na ordem neoliberal hegemônica.
Eles funcionam como um véu ou uma burca, filtrando verdades que se exibem à vista. No cruzamento entre o jornalismo e o fato, imposto à população pelos meios de comunicação, o que se oculta não é o rosto de uma mulher, mas a verdade. Em tempos neoliberais, esta conduta é mais intensa. A imprensa funciona como máquina de propaganda a serviço do mais poderoso, revelando total falta de compromisso com a verdade e com o bem-estar da humanidade.
O receituário liberal é utilizado para fazer dos fatos jornalísticos uma mercadoria. Para isso utilizam-se de técnicas que diversificam as demandas de informações cada vez mais complexas, amplas e especializadas. E a demanda é particularmente maior no que diz respeito à informação do fato político – matéria privilegiada por praticamente todas as redações, que lhe dedicam invariavelmente as primeiras páginas. Mas, mesmo quando é exigido fazer crônica da história do tempo presente, violento e cruel, dificilmente se colocam à altura da responsabilidade histórica, isto é, ao lado da verdade. A tendência é utilizar técnicas sofisticadas de maneira a ampliar o acesso e a atuação dos indivíduos, impondo a lógica do mercado de forma a afastar a população da iniciativa de produzir conteúdos estranhos à lógica-padrão. E isso faz com que o espaço de discussão seja reduzido. Predominam assim as fórmulas rebaixadas de jornalismo e a abordagem superficial da realidade, que banalizam os fatos. Como diria Ramonet, "os jornais não vendem informações aos cidadãos, mas sim cidadãos a anunciantes". E tudo na busca do lucro. Para aumentar o número de leitores, a informação hoje em dia é curta, distorcida, patética e elementar. E como é ruim... O que contribui para a precarização do trabalho jornalístico e, conseqüentemente, para a qualidade da informação.
Aceitação sem dor
A mídia, submissa ao centro do sistema capitalista, alinhada diretamente aos valores de mercado, onde tudo deve virar mercadoria, contribui para que estes decantados valores promovam a fome, a miséria, a ignorância e a guerra na periferia. Enquanto isso, na redação, o mote é a necessidade de adequação à linha editorial do jornal à dos anunciantes (e um dos maiores é o governo federal). Assim, esvaem-se nas idéias liberais, no desmonte de culturas, o próprio legado histórico da humanidade e o próprio fato presente. Nesse ponto, a mídia extrapola e passa a funcionar como uma verdadeira fábrica de notícias e propaganda. Além destas práticas, a própria inserção de classe e da "cosmologia" pessoal de certos jornalistas influenciam este processo de mascaramento da verdade, praticado largamente no ofício, e mais ainda em momentos de crise.
A mídia comercial e partidária do "pensamento único", como afirma o líder zapatista subcomandante Marcos, ao refletir sobre os intelectuais (e aqui cabe a mesma compreensão em relação aos jornalistas), diz que "eles se tornam pragmáticos por excelência, exilados da função intelectual e transformados em ecos mais ou menos estilizados por spots publicitários que inundam o mercado globalizado. Adquirem novas virtudes (reaparece o oxímoro): uma audaz covardia e uma profunda banalidade". Assim como os intelectuais de direita, a imprensa, o rádio, e a televisão brilham em suas análises do presente globalizado e suas contradições, suas revisões do passado histórico, suas clarividências. A hegemonia universal e quase absoluta da "filosofia" do dinheiro protege-os com torres de vidro blindado. Por isso, a direita é particularmente sectária e tem, exatamente por isso, o respaldo de não poucos meios de comunicação e governos.
"Queimar livros e erguer fortificações é tarefa comum dos príncipes", escreveu Jorge Luiz Borges. O escritor argentino acrescenta que todo príncipe quer que a história comece a partir dele. Na era da globalização – de "novo tipo" – não se queimam livros (embora ergam-se fortificações). Eles apenas são substituídos. Mais do que suprimir a história, o príncipe de hoje instrui seus jornalistas e intelectuais para que a refaçam de maneira que o presente seja o fim dos tempos. E isto representa o fim do mundo? O juízo final? Não! A idéia é passar para o senso-comum (construído, diga-se de passagem), que a humanidade chegou ao patamar mais desenvolvido, que a sociedade é esta e que devemos conviver entre ricos e pobres, pois esta é a sociedade ideal. Que o modelo de economia é o capitalismo e que as relações inter-humanas têm que ser substituídas pela lei do mercado. Mas não se enganem: a figura de Fukuyama e sua teoria sobre o fim da história é paradigmática neste sentido. E é deste "tesouro" das idéias liberais que surge a concepção de que não existe mais esquerda e direita, que não existem mais ideologias e a idéia de que existe só um interesse na sociedade, que não existem mais classes sociais e muito menos lutas de classes.
É preciso ver o quanto é complicada a tarefa em que devemos nos empenhar para conquistar a democratização dos meios de comunicação, pois em primeiro lugar impõe-se o espírito capitalista de estimular o egoísmo, de dilatar ambições de consumo, de ativar energias narcisísticas e tornar-nos competitivos e sedentos de levar vantagens e lucros; de criar pessoas menos solidárias, mais insensíveis às questões sociais, indiferentes à miséria, alheios ao drama de índios e negros, distantes das iniciativas que visam a defender os direitos dos pobres. Aos poucos, o espírito capitalista vem moldando em nós esse estranho ser que aceita, sem dor, a desigualdade social; que assume a glamourização do fútil; que se diverte com entretenimentos que exaltam a violência, que banalizam a pornografia e ridicularizam pobres e mulheres, como são exemplos certos programas de humor na TV.
Em busca de poder de alcance
O capitalismo promove tamanha inversão de valores em nossa consciência que defeitos qualificados pelo cristianismo de "pecados capitais" são tidos como virtudes: a avareza, o orgulho, a luxúria, a inveja e a cobiça.
A necessidade de construir alternativas ao jornalismo de mercado nunca foi tão dramática quanto agora. Visto ao longo de gerações como um instrumento para aprofundar a democracia, informar a sociedade e contribuir para a emancipação dos cidadãos, verificamos hoje que nos iludimos através dos tempos: a imprensa transformou-se em arma de alienação manejada pelo poder do capital. E, como exemplo mais recente, podemos citar o frustrado golpe das elites venezuelanas contra o presidente eleito Hugo Chávez. O papel da mídia neste fato foi decisivo a partir da convocação da greve geral para 10 de abril pela Fedecámaras e pela Central Venezuelana de Trabalhadores (CVT), que segue a reboque (sindicalismo "pelego") dos empresários. A mídia venezuelana e internacional começou a desempenhar seu papel decisivo, primeiro como articuladora do protesto, mais tarde como geradora da onda de boatos que jogaria os militares contra o presidente Chávez, deixando paralisados seus apoiadores.
A participação da imprensa foi tão forte que o jornal independente mexicano La Jornada chegou a falar em golpe midiático! Nove dos 10 jornais mais importantes da Venezuela e quatro das cinco cadeias de TV com maior audiência fazem oposição cerrada ao presidente eleito pelo povo. O sociólogo americano Gregory Wipert, correspondente em Caracas da publicação americana Z-Mag relata que, nos dias anteriores à greve geral, a mídia contrária ao governo convocou o movimento exaustivamente, em chamadas que se repetiam a cada 10 minutos. Mesmo com este apoio extraordinário, diz La Jornada, a paralisação não foi maciça. Todo o setor estatal (professores, servidores públicos, controladores de sistemas de transporte) funcionou, assim como a maior parte do setor privado. Onde houve interrupção do trabalho, continua o jornal mexicano, ela teve muito mais características de locaute. Os patrões fecharam as portas, os trabalhadores ficaram em casa. Importante dizer que a mídia brasileira jamais, em seu noticiário, classificou o golpista Carmona de ditador.
Diante deste quadro, a necessidade da construção de uma imprensa popular passa pela compreensão de que devemos ter claro que existe uma imprensa a serviço da burguesia (ricos), que pulveriza e desagrega os movimentos sociais, que em nada contribui para aumentar o nível de consciência do povo; que a alternativa é construir centros democráticos, onde os trabalhadores, os jornalistas, os publicitários possam ter um espaço de organização e união do povo. Em seguida, é preciso utilizar escrupulosamente as técnicas de jornalismo, criar meios de comunicação independentes e populares como jornais, rádios e TVs comunitárias para fazer com que esta imprensa chegue e tenha o poder de alcance de que ela precisa. Parafraseando Lênin, "a imprensa é um passo para a ação". A partir dai poderemos sonhar com uma imprensa revolucionária.
O receituário da burca
Runildo Pinto (*)
O poder voraz da mídia, orquestrada em âmbito nacional pela Rede Globo e outros grupos de comunicação, obriga-nos a pensar no papel que os meios de comunicação desempenham na ordem neoliberal hegemônica.
Eles funcionam como um véu ou uma burca, filtrando verdades que se exibem à vista. No cruzamento entre o jornalismo e o fato, imposto à população pelos meios de comunicação, o que se oculta não é o rosto de uma mulher, mas a verdade. Em tempos neoliberais, esta conduta é mais intensa. A imprensa funciona como máquina de propaganda a serviço do mais poderoso, revelando total falta de compromisso com a verdade e com o bem-estar da humanidade.
O receituário liberal é utilizado para fazer dos fatos jornalísticos uma mercadoria. Para isso utilizam-se de técnicas que diversificam as demandas de informações cada vez mais complexas, amplas e especializadas. E a demanda é particularmente maior no que diz respeito à informação do fato político – matéria privilegiada por praticamente todas as redações, que lhe dedicam invariavelmente as primeiras páginas. Mas, mesmo quando é exigido fazer crônica da história do tempo presente, violento e cruel, dificilmente se colocam à altura da responsabilidade histórica, isto é, ao lado da verdade. A tendência é utilizar técnicas sofisticadas de maneira a ampliar o acesso e a atuação dos indivíduos, impondo a lógica do mercado de forma a afastar a população da iniciativa de produzir conteúdos estranhos à lógica-padrão. E isso faz com que o espaço de discussão seja reduzido. Predominam assim as fórmulas rebaixadas de jornalismo e a abordagem superficial da realidade, que banalizam os fatos. Como diria Ramonet, "os jornais não vendem informações aos cidadãos, mas sim cidadãos a anunciantes". E tudo na busca do lucro. Para aumentar o número de leitores, a informação hoje em dia é curta, distorcida, patética e elementar. E como é ruim... O que contribui para a precarização do trabalho jornalístico e, conseqüentemente, para a qualidade da informação.
Aceitação sem dor
A mídia, submissa ao centro do sistema capitalista, alinhada diretamente aos valores de mercado, onde tudo deve virar mercadoria, contribui para que estes decantados valores promovam a fome, a miséria, a ignorância e a guerra na periferia. Enquanto isso, na redação, o mote é a necessidade de adequação à linha editorial do jornal à dos anunciantes (e um dos maiores é o governo federal). Assim, esvaem-se nas idéias liberais, no desmonte de culturas, o próprio legado histórico da humanidade e o próprio fato presente. Nesse ponto, a mídia extrapola e passa a funcionar como uma verdadeira fábrica de notícias e propaganda. Além destas práticas, a própria inserção de classe e da "cosmologia" pessoal de certos jornalistas influenciam este processo de mascaramento da verdade, praticado largamente no ofício, e mais ainda em momentos de crise.
A mídia comercial e partidária do "pensamento único", como afirma o líder zapatista subcomandante Marcos, ao refletir sobre os intelectuais (e aqui cabe a mesma compreensão em relação aos jornalistas), diz que "eles se tornam pragmáticos por excelência, exilados da função intelectual e transformados em ecos mais ou menos estilizados por spots publicitários que inundam o mercado globalizado. Adquirem novas virtudes (reaparece o oxímoro): uma audaz covardia e uma profunda banalidade". Assim como os intelectuais de direita, a imprensa, o rádio, e a televisão brilham em suas análises do presente globalizado e suas contradições, suas revisões do passado histórico, suas clarividências. A hegemonia universal e quase absoluta da "filosofia" do dinheiro protege-os com torres de vidro blindado. Por isso, a direita é particularmente sectária e tem, exatamente por isso, o respaldo de não poucos meios de comunicação e governos.
"Queimar livros e erguer fortificações é tarefa comum dos príncipes", escreveu Jorge Luiz Borges. O escritor argentino acrescenta que todo príncipe quer que a história comece a partir dele. Na era da globalização – de "novo tipo" – não se queimam livros (embora ergam-se fortificações). Eles apenas são substituídos. Mais do que suprimir a história, o príncipe de hoje instrui seus jornalistas e intelectuais para que a refaçam de maneira que o presente seja o fim dos tempos. E isto representa o fim do mundo? O juízo final? Não! A idéia é passar para o senso-comum (construído, diga-se de passagem), que a humanidade chegou ao patamar mais desenvolvido, que a sociedade é esta e que devemos conviver entre ricos e pobres, pois esta é a sociedade ideal. Que o modelo de economia é o capitalismo e que as relações inter-humanas têm que ser substituídas pela lei do mercado. Mas não se enganem: a figura de Fukuyama e sua teoria sobre o fim da história é paradigmática neste sentido. E é deste "tesouro" das idéias liberais que surge a concepção de que não existe mais esquerda e direita, que não existem mais ideologias e a idéia de que existe só um interesse na sociedade, que não existem mais classes sociais e muito menos lutas de classes.
É preciso ver o quanto é complicada a tarefa em que devemos nos empenhar para conquistar a democratização dos meios de comunicação, pois em primeiro lugar impõe-se o espírito capitalista de estimular o egoísmo, de dilatar ambições de consumo, de ativar energias narcisísticas e tornar-nos competitivos e sedentos de levar vantagens e lucros; de criar pessoas menos solidárias, mais insensíveis às questões sociais, indiferentes à miséria, alheios ao drama de índios e negros, distantes das iniciativas que visam a defender os direitos dos pobres. Aos poucos, o espírito capitalista vem moldando em nós esse estranho ser que aceita, sem dor, a desigualdade social; que assume a glamourização do fútil; que se diverte com entretenimentos que exaltam a violência, que banalizam a pornografia e ridicularizam pobres e mulheres, como são exemplos certos programas de humor na TV.
Em busca de poder de alcance
O capitalismo promove tamanha inversão de valores em nossa consciência que defeitos qualificados pelo cristianismo de "pecados capitais" são tidos como virtudes: a avareza, o orgulho, a luxúria, a inveja e a cobiça.
A necessidade de construir alternativas ao jornalismo de mercado nunca foi tão dramática quanto agora. Visto ao longo de gerações como um instrumento para aprofundar a democracia, informar a sociedade e contribuir para a emancipação dos cidadãos, verificamos hoje que nos iludimos através dos tempos: a imprensa transformou-se em arma de alienação manejada pelo poder do capital. E, como exemplo mais recente, podemos citar o frustrado golpe das elites venezuelanas contra o presidente eleito Hugo Chávez. O papel da mídia neste fato foi decisivo a partir da convocação da greve geral para 10 de abril pela Fedecámaras e pela Central Venezuelana de Trabalhadores (CVT), que segue a reboque (sindicalismo "pelego") dos empresários. A mídia venezuelana e internacional começou a desempenhar seu papel decisivo, primeiro como articuladora do protesto, mais tarde como geradora da onda de boatos que jogaria os militares contra o presidente Chávez, deixando paralisados seus apoiadores.
A participação da imprensa foi tão forte que o jornal independente mexicano La Jornada
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