INTERVENÇÃO DE MIGUEL URBANO RODRIGUES
NO IV ENCONTRO DE UNIDADE DOS COMUNISTAS
-Florianópolis, 19 Julho de 2008
Camaradas:
A campanha de criminalização do comunismo coincide com um renascimento a nível mundial de interesse pelo marxismo.
A crise de civilização desencadeada pela estratégia de dominação universal do sistema de poder imperial dos EUA e pelo agravamento da crise estrutural do capitalismo ao invés de sepultar as ideias de Marx contribuiu para renovar o interesse pelo seu pensamento. O desaparecimento da URSS estimulou, sobretudo na Europa e na América Latina, uma reflexão criativa sobre a obra do autor de «O Capital» . Intelectuais de prestígio internacional publicaram livros importantes para a compreensão dos problemas e situações que precederam o terremoto social que assinalou o fim do modelo de socialismo soviético e a transformação da Rússia num país capitalista.
O renovado interesse pelo marxismo manifesta-se também através de conferencias e seminários sobre o tema e a crise do imperialismo.
Mas as incógnitas sobre o futuro próximo da humanidade são tantas que as conclusões divergem, oscilando entre um optimismo exagerado e uma perspectiva catastrófica.
Na América Latina, a Revolução Bolivariana e a eleição de presidentes eleitos com programas progressistas desencadearam uma vaga de esperança com matizes românticos. Autores prestigiados afirmam que a Venezuela caminha rapidamente para o Socialismo e que o processo na pátria de Bolívar apresenta já os contornos de um modelo inovador, o chamado Socialismo do Século XXI. Alguns condenam inclusive a Revolução de Outubro de 17 e acompanham a condenação da URSS de criticas duras a Marx e Lenine cuja herança teórica estaria hoje superada.
Não me proponho neste Encontro de Florianopolis polemizar com os defensores dessas posições, que desaprovo, mas somente trazer uma modesta contribuição ao tema que aqui nos reúne: a unidade dos comunistas*.
BETTELHEIM E A LUTA DE CLASSES
Coincidimos na disponibilidade para lutar pela unidade dos comunistas, mas estamos conscientes de que a concretização desse objectivo vai tardar.
No momento em que a quase totalidade dos partidos comunistas europeus se integraram no chamado Partido da Esquerda , uma organização que renunciou ao marxismo leninismo, creio, camaradas, que é mais do que nunca necessário ,na fidelidade aos princípios, aprofundar a reflexão sobre as causas do desastre que foi para a humanidade o desaparecimento da URSS.
É minha convicção de que algumas das respostas que procuramos podem ser encontradas em obras de autores muito diferentes com posições por vezes antagónicas sobre a Historia da União Soviética.
Cito dois : o francês Charles Bettelheim e o italiano Domenico Losurdo.
A minha concordância com opiniões expressas pelo primeiro no Tomo I da sua Trilogia sobre a Luta de Classes na URSS não significa- sublinho -identificação com o conteúdo dos Tomos II e III cuja orientação global distorce grosseiramente a História da Revolução Russa.
Lenine advertiu que as classes sociais após a vitoria da Revolução não poderiam ser suprimidas imediatamente. «Elas- afirmou - permanecem e permanecerão na época da ditadura do proletariado».
Bettelheim recorda essa evidência para enfatizar que a transição do capitalismo para o socialismo é um processo de muito larga duração que não pode ser assegurado pela simples vontade dos dirigentes revolucionários. Foi a consciência dessa realidade que levou Lenine, após a vitória da Revolução, a adoptar numa primeira fase – com o apoio nem sempre unânime do Partido –uma política de transição muito prudente condensada na fórmula «capitalismo de estado sob a direcção da ditadura do proletariado». Essa opção marcou uma fronteira nítida entre as transformações jurídicas e políticas a serem empreendidas e a destruição das relações de produção capitalistas (não confundir com o modo de produção) que não podiam ser então rapidamente eliminadas.
O Partido Comunista foi o instrumento decisivo para a tomada do Poder na Rússia. Mas essa evidência não oculta outra: num país que teria na época uns 130 milhões de habitantes, o total de militantes, segundo a maioria dos historiadores, seria inferior a 40 000. Entretanto, sem essa força organizada e disciplinada a revolução não teria podido defender-se vitoriosamente na Guerra Civil e da intervenção militar das potências estrangeiras, comandada pela Inglaterra e pela França.
A instalação do Poder Soviético assinalou o início de um período prolongado em que coincidiram entrosados dois processos revolucionários, o da revolução proletária e o da revolução democrático burguesa. Essa simultaneidade era inevitável num país onde a grande maioria da população era constituída de camponeses que, depois de ocuparem os grandes latifúndios, aceitaram a direcção do Partido Bolchevique, que os defendia dos Brancos, mas não estavam preparados para a aceitação do socialismo.
Lenine teve a percepção, nos últimos anos da sua vida, de que num país arruinado pela guerra civil e pelo cerco imperialista, o projecto de ditadura do proletariado tinha de ser adaptado a situações não previstas.
O papel dos Sindicatos e dos Sovietes, fundamental durante a Revolução de Fevereiro, diminuiu rapidamente. O Partido assumiu então gradualmente funções em áreas que não eram suas. A consequência desse fenómeno foi uma queda da participação das massas com reflexos numa burocratização crescente do Estado e do Partido.
Mas a devastadora fome do ano 21 tornara inevitável para salvar a Revolução as opções que acentuaram a tendência para uma hipertrofia do Partido e a adopção de medidas orientadas para a construção do socialismo. A Nova Politica Económica-NEP reintroduziu, como se sabe, mecanismos do capitalismo numa sociedade revolucionária profundamente traumatizada.
Na sua versão inicial a NEP apontava para uma aliança transitória do capitalismo de estado com o socialismo através de concessões à pequena burguesia. Mas a fórmula adoptada funcionou mal desde o início.
Num artigo escrito em Janeiro de 1923, mas somente publicado em Maio, pouco antes do agravamento da sua doença, Lenine reviu a sua posição perante a NEP, atribuindo grande importância à produção cooperativa como formação socialista capaz de mobilizar o campesinado. A cooperação, tal como a esboçava nesse trabalho, adaptava-se totalmente ao projecto socialista porque permitiria o desenvolvimento de relações económicas socialistas no quadro da produção camponesa.
Ao defender explicitamente o carácter socialista das cooperativas que desejava ver criadas, retomava, afinal ideias de Marx e Engels sobre o cooperativismo num Estado socialista.
De acordo com essa concepção de uma NEP reformulada, as massas camponesas seriam aliadas do proletariado não somente na etapa democrática da Revolução, mas um aliado permanente que avançaria ombro a ombro com ele rumo ao socialismo.
Esse projecto, se tivesse sido implementado, teria possibilitado uma colectivização das terras muitíssimo diferente da que a partir do ano 28 levou ao aparecimento de um modelo de Kolkhoses nos quais a participação criativa dos camponeses foi reduzida ao mínimo, com as dramáticas consequências que conhecemos.
Essa capacidade invulgar de questionar as suas próprias opções estratégicas quando a prática apontava para a necessidade de as rever foi uma das facetas do carácter de |Lenine.
Como sabemos, a burocratização do Partido, que tanto preocupava Lenine, acentuou-se após a sua morte. Os Sindicatos não voltaram a assumir a tarefa de defender os interesses dos trabalhadores, tal como a concebia Lenine e a expôs na sua polémica com Trotsky e Bukharine. O mesmo aconteceu com os Sovietes. Criados como instrumento da vontade das massas e garantia da sua participação decisiva perderam protagonismo e a sua presença apagou-se gradualmente.
A MITOLOGIA DO HOMEM NOVO
Camaradas
Antes de abordar os desafios colocados pela transição do capitalismo para o socialismo, questão fundamental que muito preocupava Lenine, abro aqui um parênteses para sintetizar em alguns parágrafos o tema do Homem Novo na perspectiva em que o desenvolvo no capitulo de um livro que em breve será editado em Portugal com o titulo «Meditação Descontínua sobre o Envelhecimento».
Na época em que entrei no Partido a ideia do Homem Novo aparecia na literatura politica socialista associada à vitória da revolução. O surgimento de uma geração de cidadãos diferentes seria uma consequência inevitável do esforço de construção do socialismo. Do desmantelamento da velha ordem social, vitrina dos males do capitalismo, brotaria com naturalidade um tipo de homem (e de mulher) que, pela mentalidade e pelos atos, como filho da revolução, lhe transmitiria o projecto de intervir na transformação do mundo.
O operário russo Stakhanov, que revolucionara o trabalho nas fábricas, multiplicando a produção, fora erigido pela propaganda em modelo do trabalhador comunista. A sua vida confirmara o óbvio: a revolução era uma forja da qual sairia uma nova humanidade.
A guerra contra a Alemanha nazi, na qual o Exército Vermelho fora sujeito de epopeias como a defesa de Leninegrado e a batalha de Stalinegrado, tinha estimulado o culto do heroísmo.
Foi a reflexão sobre o desaparecimento da URSS que me levou a traçar uma fronteira entre o heroísmo individual e colectivo e o homem novo como paradigma de uma nova sociedade. A História demonstra que em períodos de grandes convulsões sociais, aqueles que participam de revoluções progressistas ou guerras de libertação ou de sobrevivência nacional desenvolvem as suas melhores potencialidades, transformando-se profundamente. É uma ascese inerente à condição humana. Mas confirma também que essas transformações somente marcam extensivamente o conjunto da sociedade onde ocorrem por um período não muito prolongado. Mesmo em países onde a perspectiva das existências individuais foi alterada radicalmente, a própria transformação dos elementos da vanguarda revolucionária é um fenómeno de duração limitada. A segunda e a terceira geração diferem da primeira. O eticismo revolucionário e a entrega irrestrita ao projecto revolucionário exigem uma tensão na breve aventura da vida que não são, no fundamental, transmissíveis quando, após o triunfo da revolução, começa a tomar forma, numa atmosfera de tranquilidade, uma nova sociedade diferente da anterior, com a luta de classes atenuada ou mesmo quase imperceptível. Sem entrar em análises que seriam aqui descabidas julgo útil recordar uma evidência quase esquecida. A Revolução Russa de Outubro de 17, ao destruir a velha ordem, substituiu o modo de produção capitalista por outro que colocou os meios de produção nas mãos do Estado. Mas essa alteração, embora imprescindível para a edificação futura de uma sociedade socialista, não pôs termo à luta de classes que iria mesmo intensificar-se noutro contexto.
A cultura da burguesia, uma super estrutura, permaneceu. Lenine, consciente dessa realidade, advertiu repetidas vezes que a luta de classes se manteria por muitos anos pelo que a ditadura do proletariado teria de se preparar para o confronto social.
O reaparecimento em força do homem velho, precedendo o desaparecimento do Estado Soviético, anunciou-se aliás desde o início da perestroika. Em Ieltsin temos um exemplo expressivo do homem velho que, escondido, fez carreira no aparelho do PCUS até chegar ao Politburo e à Presidência da Federação Russa.
Na Polónia tive a oportunidade de verificar, em visitas frequentes, que o homem velho estava instalado em postos-chave da Administração e do Partido. Mais de 80% das terras permaneceram ali sempre na posse de agricultores privados. Obviamente a ideologia da antiga burguesia, enraizada no campesinado e acarinhada pela Igreja Católica, exerceu uma poderosa influência na atitude contra-revolucionária da maioria da população.
O eslovaco Alexandre Dubcek , que era o secretario geral do Partido Comunista da Tchecoslováquia durante a chamada Primavera de Praga , pode ser apontado como exemplo do homem velho, longamente camuflado. Numa entrevista à imprensa francesa, após o regresso do capitalismo ao seu pais, confessou que nunca fora marxista.
A subestimaçao das heranças culturais – positivas ou negativas conforme os casos – foi um erro muito comum nos Partidos que exerceram o Poder no Leste europeu durante quase meio século, após a II Guerra Mundial.
Diferenças abissais separavam esses países na sua evolução histórica. A tendência para aplicar em todos quase a mesma fórmula na transição do capitalismo para o socialismo somente poderia dar mau resultado.
Não esqueço a minha surpresa em Budapeste, quando a visitei pela primeira vez, ao encontrar na redacção do órgão central do Partido do poder dirigentes ostensivamente anti-soviéticos. Alguns já defendiam em
A contra revolução de 1956 foi filha de uma história trágica.
Recordo também que em 1989, durante a perestroika, ouvi com assombro redactores da “Pravda” atacar Fidel Castro qualificando-o de ditador. Vi neles exemplos da tenaz sobrevivência do homem velho.
Cuba foi a excepção à regra na tempestade que atingiu o socialismo. Resistiu à grande vaga que reimplantou o capitalismo na Rússia e na Europa Oriental. Os dirigentes das grandes potências imperialistas tinham por inevitável a derrocada do regime após o desaparecimento da URSS. Em Miami as organizações de emigrados contra - revolucionários festejaram antecipadamente o regresso, sonhavam já com a retomada das antigas fazendas e mansões.
Enganaram-se. Cuba resistiu numa saga épica. Contrariamente ao que aconteceu na União Soviética, o povo e o Partido Comunista, unidos, mobilizaram-se em defesa do Socialismo. Fidel foi o primeiro a advertir que a defesa da Revolução exigiria enormes sacrifícios. O povo suportou-os com estoicismo. Mas a introdução de mecanismos do capitalismo na economia, indispensável num país que antes realizava quase 90% do seu comercio externo com o bloco socialista, produziu estragos no tecido social. A nação conseguiu resistir, forjando defesas, mas os efeitos negativos do novo relacionamento com o mundo capitalista são identificáveis e perigosos, como Fidel reconheceu num discurso antes de adoecer. Como se manifestam? Pelo regresso do homem velho. A concepção romântica do Che sobre o rápido advento do homem novo como consequência da Revolução e da consolidação das suas conquistas foi desmentida por uma realidade não previsível. O homem velho permanecia invisível, mas não tinha desaparecido, tal como na Rússia. E hoje transmite a sua ideologia a segmentos das novas gerações. Raul Castro está consciente do perigo e, em diálogo com o seu povo, trata de o enfrentar.
A Venezuela bolivariana, onde o rumo da História tem sido traçado desde o inicio deste século, por uma gigantesca luta de classes, oferece outro exemplo da tenaz sobrevivência da ideologia da burguesia em processos orientados para uma mudança radical de sociedades moldadas pelo capitalismo. Hugo Chavez acreditou primeiro na adesão monolítica das Forças Armadas ao seu projecto revolucionário. O golpe militar de 2002 demonstrou que essa convicção era ingénua. Posteriormente foi abandonado por destacados quadros, civis e militares da sua inteira confiança. Muitos passaram a integrar as fileiras da oposição. Eram , afinal, representantes do homem velho, com máscaras do anunciado homem novo.
A OFENSIVA ANTICOMUNISTA
O fim da URSS e as circunstancias em que ocorreu esse desastre geraram a nível mundial entre segmentos da esquerda um estranho fenómeno de autofobia. Mesmo no movimento comunista um ponderável sector, contaminado pelo vírus transmitido pela formidável ofensiva de criminalização do comunismo, assumiu ideias, argumentos, e até calúnias, do inimigo da véspera, renegando valores e princípios que antes defendia. Ex-dirigentes de partidos operários participaram de campanhas que exorcizaram o “socialismo real”; alguns , em autoflagelaçao, não hesitaram, arrependidos, em condenar a Revolução de Outubro, definindo a sua herança como totalmente negativa. Outros lançaram às urtigas Marx, Engels e Lenine, qualificando as suas obras de velharias do passado; outros proclamam que os partidos comunistas deveriam diluir-se nos movimentos sociais, porque somente estes poderiam, na era da globalização, realizar a revolução social.
Centenas de livros foram publicados por historiadores e cientistas sociais das grandes universidades do Ocidente sobre a crise do Socialismo e as causas do desaparecimento da URSS. Li algumas dessas obras, a maioria de prestigiados académicos, incluindo críticos do neoliberalismo.
Creio, camaradas, que vai tardar uma reflexão global séria, isenta de sectarismo, sobre a teoria do socialismo e do comunismo.
O húngaro István Meszaros, o italiano Domenico Losurdo e os franceses Georges Labica e George Gastaud distanciam-se com frequência nas análises e nas conclusões sobre o tema. Mas identifico neles talvez os marxistas mais criadores dos últimos vinte anos. Aprendi muito ao acompanhar a sua reflexão sobre as causas do fim do “socialismo real” e sobretudo sobre a complexidade da transição – tão pouco estudada - do capitalismo para o socialismo.
Lenine compreendeu que levar a cabo com êxito essa transição seria uma tarefa muito mais difícil do que a tomada do Poder na Rússia.
O Partido Bolchevique elaborou uma estratégia para tomar o Poder, mas não dispunha de uma teoria revolucionária para a construção da futura sociedade concebida como socialista. A instauração da NEP após o fracasso da política do “comunismo de guerra” expressou a consciência dessa realidade e ficou a assinalar uma primeira tentativa de reformulação da teoria socialista. Mas o grande revolucionário não viveu o suficiente para esboçar um projecto capaz de imprimir um rumo original e firme à sociedade post - capitalista que- ele sabia isso- teria de percorrer um longo caminho para se transformar numa sociedade socialista.
A apologia e a diabolizaçao de Stalin, o elogio e a satanizaçao de Trostky, a ofensiva lançada contra Marx e Lenine , as teorias que atribuem à “traição” o malogro do “socialismo real” inserem-se em campanhas com objectivos por vezes antagónicos. Mas todas elas subestimam ou ignoram a problemática da transição, fundamental para a compreensão da tragédia que foi para a humanidade – repito - o fim da União Soviética
Transcorreram muitos anos até se tornar mais ou menos evidente para os dirigentes soviéticos que a tese de Marx sobre o definhamento do Estado e a sua absorção pela sociedade civil, que deveria acompanhar o seu desaparecimento, juntamente com as classes sociais, o mercado, a identidade nacional e as religiões, expressava uma visão utópica do mundo. Nas ultimas décadas do século XIX, a humanidade não estava preparada para o advento de uma sociedade comunista como desfecho natural de uma sociedade socialista. Nem hoje, no inicio do século XXI , estão reunidas condições mínimas para o desaparecimento do Estado após a vitória de uma revolução orientada para o Socialismo. Era romântica a esperança do historiador Marc Bloch ao prever que os Sovietes iriam “transformar o poder em amor”.
Lenine, após a Guerra Civil, quando a jovem União Soviética lutava para sobreviver, hostilizada pelas potências imperiais, percebeu que o projecto de uma Republica Soviética Mundial , que ele defendera –e continuava a empolgar Trotsky – era um sonho que não podia concretizar-se em futuro previsível.
Lenine insistia ainda na tese do definhamento do estado, mas a longo prazo, e apontou a tradição do autoritarismo asiático como obstáculo à democracia no Partido. Para ele a defesa da Rússia revolucionária exigia uma reformulação estratégica que considerava absolutamente imprescindível.
Stalin conseguiu – recorrendo a métodos cujas consequências não avaliou – transformar um país arruinado e semi destruído por quase dez anos de guerras na segunda potência industrial do mundo. Negar as gigantescas conquistas sociais, culturais e económicas e o mérito do esforço colectivo que permitiu a construção daquilo a que se chamou “o socialismo real”, bem como o significado da defesa da URSS na guerra que findou com a derrota do Reich nazi – é fechar os olhos à História.
Mas, concentrando um enorme poder, Stalin não somente o utilizou discricionariamente, distanciando-se da concepção leninista do Partido, nomeadamente na prática de crimes que deixaram seqüelas terríveis no tecido social, como foi incapaz de compreender que a sociedade soviética era apenas pré -socialista ,mas não ainda uma sociedade socialista.
O Socialismo exige um nível de participação das massas, isto é dos trabalhadores guindados a classe dominante como sujeito da nova sociedade, que nunca foi atingido na União Soviética. O fato de o Estado, sob a direcção de Stalin, se ter fortalecido, desempenhando um papel cada vez mais importante, em vez de definhar, dificultou de ano para ano, a criação das condições mínimas exigidas pela transição do pos-capitalismo –como lhe chama Domenico Losurdo- ao socialismo. Os Sovietes, concebidos como embrião e motor da futura sociedade socialista, definharam enquanto o Estado se agigantava. Admitir, como sustentou Stalin, que o Partido passou a representar os trabalhadores como sujeito é uma atitude incompatível com o conceito leninista da participação – é negar o marxismo. Mas essa conclusão não foi evidente para o Comité Central do PCUS. E, mesmo hoje, desaparecida a União Soviética, dirigentes de muitos partidos comunistas não a assimilaram e persistem em tomar por socialista – inclusive na critica ao modelo - a sociedade do “socialismo real”, apesar de ela não ter tido a oportunidade de ultrapassar a etapa pré- socialista.
Historiadores marxistas, na apreciação que fazem das mudanças iniciadas na URSS após o XX Congresso do PCUS, concluem – a meu ver com fundamento – que a política de Krustchov assinalou o início de um revisionismo cuja dinâmica conduziu á destruição da URSS. Gorbatchov teria sido apenas o instrumento de uma estratégia, cabendo-lhe vibrar o golpe final no socialismo.
Entretanto, esses críticos, com poucas excepções, quase omitem referências à conclusão absurda a que Krustchov tinha chegado sobre a sociedade soviética no início dos anos 60. Num discurso triunfalista, revelador da sua incompreensão da História, ele definiu então a URSS como uma sociedade de “socialismo avançado”, que iniciara já a transição para o comunismo e estava em condições de superar em breve os EUA como primeira potência económica mundial. Não explicou obviamente como e quando o Estado Soviético começaria a definhar rumo ao desaparecimento. Mas o enorme disparate do então secretário geral do PCUS é esclarecedor da noção primária que ele tinha do socialismo e do comunismo.
Domenico Losurdo é certamente um dos filósofos marxistas contemporâneos que melhor ilumina na sua obra as múltiplas, complexas e imprevistas situações e conflitos que desviaram a URSS e o PCUS do projecto inicial de Lenine.
Ele nos lembra que responsabilizar este ou aquele dirigente por decisões e erros que teriam sido decisivos para o fim do “socialismo real” é uma atitude voluntarista incompatível com o método marxista. Uma reflexão lúcida e abrangente sobre o período compreendido entre a Revolução de Outubro e a agonia da sociedade soviética em 1991 leva à conclusão de que o “desfecho” não deve ser atribuído a erros de um ou dois dirigentes ou de alguns acontecimentos internos ou externos, pois foi a resultante de uma soma muito complexa e diversificada de “factores”. O “campo socialista” estava minado e pronto para o “desfecho” quando se produziu a “fagulha” que o destruiu.
A história de 70 anos da URSS não pode ser reduzida a uma série ininterrupta de supostas “traições”. Losurdo, na sua viagem através dessa história, que marcou positivamente a evolução da humanidade, chama a atenção para a acumulação de muitos dos “factores” e imprevistos que se inseriram no movimento do processo, produzindo efeitos negativos ,e em alguns casos devastadores. Cita, entre outros, a primeira fome durante a guerra civil, a morte prematura de Lenine, a ruptura da unidade no PCUS, as seqüelas do processo de colectivização da terra, a satanização da Jugoslávia e de Tito, as divergências e o choque ideológico com a China de Mao tse , o hegemonismo nas relações com os países do «campo socialista”, a prepotência nas relações com as nacionalidades da União, a invasão do Vietnam pela China, e as devastadoras consequências da permanente hostilidade das potências capitalistas, sobretudo dos EUA, empenhados em destruir o Estado que Reagan definia como “o Império do Mal”. Outros “ factores” contribuíram para o desastre final, mas aqueles que cita foram reais e importantes.
Engels já tinha advertido que todas as grandes revoluções fixam como meta objectivos muito mais ambiciosos do que aqueles que conseguem atingir após a conquista do Poder.
Assim aconteceu com a Revolução Francesa de 1789. E voltou a acontecer com a Revolução Russa de Outubro de 1917, iniciada com a tomada do Poder pelo Partido Bolchevique.
PASSAR DA DEFENSIVA À OFENSIVA
Camaradas
A Unidade dos Comunistas, tema deste Encontro, é um objectivo muito difícil de atingir.
Mas nós, comunistas, temos o dever de lutar por ela. Sabemos que é absolutamente necessária na luta planetária contra o capitalismo. Este atravessa uma crise estrutural para a qual não tem solução. No seu desespero o monstruoso sistema de poder que tem o seu pólo nos EUA está envolvido em guerras de agressão perdidas e procura, saqueando os recursos naturais de povos do Terceiro Mundo, atenuar os seus défices comerciais astronómicos de Estado parasita
Mas o fim do capitalismo vai tardar. Não tem data no calendário.
As forças que rejeitam as políticas predatórias do imperialismo sabem o que não querem, mas não o que seria o “mundo possível” que se tornou lema do Fórum Social Mundial.
Já dizia Lenine que não há revolução vitoriosa sem teoria revolucionária.
E aqui o horizonte é nevoento.
Lenine acreditava que a Revolução de Outubro na Rússia funcionaria como detonador de «turbulentas revoltas políticas e económicas» na Europa e fora dela.
Os acontecimentos posteriores à I Guerra Mundial (14-18) não confirmaram essa previsão. O capitalismo sobreviveu. Após o fracasso da revolução espartaquista na Alemanha e a derrota do Exército Vermelho às portas de Varsóvia (com a ajuda da França) o dirigente comunista concluiu que a tarefa prioritária era a defesa da Revolução Russa do cerco imperial, custasse o que custasse. Mas a impossibilidade em prazo previsível da revolução noutros países da Europa exigiu uma dramática revisão estratégica.
O projecto socialista, concebido para a ofensiva, foi forçado a passar à defensiva. O refluxo do movimento revolucionário no mundo, após Versailles, tornou inevitável essa opção.
Mészaros aponta diferenças importantes entre o pensamento de Lenine e o de Stalin sobre a estratégia imposta pela necessidade da defesa do socialismo na Rússia. Lenine encarava a luta a travar como “uma operação para sustentar uma posição”. Era necessário aguardar desenvolvimentos favoráveis no plano mundial para retomar ,mais tarde, a ofensiva. Stalin acreditava que a vitória socialista em Outubro abria por si só as portas a uma etapa superior do socialismo rumo ao comunismo.
Lenine não tinha ilusões sobre a duração desse período que antevia muito prolongado.
E a Historia deu-lhe razão. O mundo do capital sobreviveu ao temporal desencadeado pelo crash da Bolsa de Nova York. A crise de 29-33 não foi estrutural. A própria opção pelo fascismo na Alemanha de Weimar inseriu-se numa crise cíclica do capitalismo.
Na Europa Ocidental e nos EUA os órgãos de combate socialistas que actuavam mo âmbito de instituições de fachada democrática ganharam lutas secundarias nos anos 30 e impuseram reformas progressistas. Isso foi possível porque a Revolução Russa favoreceu a ascensão da luta de massas. Mas a correlação de forças não permitia a vitória na guerra contra o capital.
O QUE FAZER ?
Nos últimos anos, a crise da maioria dos Partidos Comunistas e a integração de alguns no sistema de poder hegemonizado pelos EUA contribuíram para que movimentos sociais que recusam o neoliberalismo assumissem, sobretudo no Fórum Social Mundial, um protagonismo inesperado. Alguns defendem reformas orientadas para a humanização do capitalismo, projecto utópico porque o capitalismo é ,pela sua própria essência e fins, desumano. Intelectuais como Toni Negri, Hardt e John Holloway contribuíram com as suas teorias desmobilizadoras para semear a confusão, sobretudo em meios académicos progressistas.
Penso que Meszaros enuncia uma realidade ao lembrar o obvio, isto é a incapacidade do capital para resolver a sua crise estrutural e reconstituir com êxito as condições da sua dinâmica expansionista.
Identifico-me com ele quando afirma que “ o trabalho, na sua condição de antagonista estrutural do capital, somente poderá levar avante a sua causa, mesmo minimamente, na medida em que assumir uma postura ofensiva e quando ,mesmo lutando por metas mais limitadas, encare como objectivo a negação radical e a transformação positiva do modo de produção capitalista”.
Não se infira da minha concordância com a critica de Meszaros à farsa das democracias representativas –na pratica elas são ditaduras da burguesia de fachada democrática- que subestimo a participação das forças progressistas nos processos eleitorais. Essa seria uma atitude irresponsável. Basta recordar as sucessivas vitórias alcançadas na América Latina por essas forças, após a eleição de Hugo Chavez , para se ter a noção da importância dessa frente de luta.
Não esqueci os ensinamentos de Lenine sobre a participação dos deputados bolcheviques na Duma Russa na época da autocracia czarista.
No caso de Portugal a eleição de prefeitos comunistas em dezenas de municípios demonstrou que onde o povo abre aos comunistas a possibilidade de exercer o Poder Local a transformação da sociedade, apesar da hostilidade do governo central, reflecte quase sempre uma humanização da vida e a participação do povo como sujeito colectivo .
No tocante ao Parlamento a situação em toda a Europa é, porem, outra, porque os partidos que representam o capital são sempre majoritários . A intervenção dos comunistas nem por isso deixa de ser importante. Mas somente quando o seu Partido se mantêm fiel aos princípios. Daí que a utilidade social da sua presença nos Parlamentos seja inseparável da recusa de concessões a estratégias reformistas .A fidelidade ao objectivo - o Socialismo distante - exige naturalmente a defesa das lutas reivindicativas dos trabalhadores; mas exige, simultânea e paralelamente a denuncia firme da engrenagem do sistema e a recusa de ilusões reformistas e de manobras eleiçoeiras.
O capitalismo -repito- entrou na sua fase senil e não tem soluções para a sua crise estrutural.
A crise do imobiliário nos EUA estabeleceu o pânico no mundo da finança . Neste ano de 2008 os EUA, não obstante o seu poderio militar e económico, são um país parasita que consome muito mais do que produz. São presentemente o pais mais endividado do mundo.
As guerras do Iraque e do Afeganistão são guerras perdidas. Inevitavelmente a retirada daqueles países terá em múltiplas frentes, como derrota histórica, consequências devastadoras para a imagem dos EUA.
Mas a nível mundial é muito limitada a consciência de que a actual crise assume os contornos de uma crise global de todas as instituições. Levará à morte do capitalismo ou à destruição da civilização e a uma era de barbárie.
A velha pergunta de Lenine- O que fazer ? – adquire assim uma actualidade dramática.
É um facto que na Europa Ocidental, com excepção dos Partidos Comunistas Grego e Português, que permanecem fieis ao marxismo –leninismo, os demais adoptaram estratégias marcadas por concessões ao sistema. Ao aderirem por exemplo ao chamado Partido da Esquerda, cujo programa o projecta como organização reformista. Em vez de permanecerem fiéis ao objectivo final, o Socialismo, esses partidos funcionam já, pela sua passividade, como factor de neutralização do choque entre o trabalho e o capital.
Mas sejamos realistas. A criação de condições para a futura democracia participativa, a única autêntica, não resultará, insisto, da acção convergente dos movimentos sociais progressistas, como sustenta o italiano Fausto Bertinotti. O poder do capital somente poderá ser enfrentado vitoriosamente pela acção dos trabalhadores, com o apoio de partidos e sindicatos revolucionários.
No Brasil foi recentemente editado pelo MST um livro muito importante cuja leitura recomendo. Chama-se “ Lenine e a Revolução” .É simultaneamente uma lição de história e um incentivo ao combate.
Partindo da denuncia da criminalização do comunismo, o autor, o professor Jean Salem- filho do escritor Henri Alleg - herói dos povos da França e da Argélia – utiliza Seis Teses de Lenine para nos lembrar que os grandes problemas da vida dos povos são sempre resolvidos , no final, pela força ,e que uma revolução é sempre uma série de batalhas ,cabendo aos partidos de vanguarda fornecer a cada etapa a palavra de ordem adaptada à situação objectiva.
Camaradas:
Neste mundo caótico, ameaçado pela irracionalidade do imperialismo, permaneço optimista. A única alternativa à barbárie é o socialismo.
Não sabemos, por ora, como derrotar o inimigo para construir um mundo diferente do actual. Mas a vitória , sem data no calendário, está ao alcance do homem. As causas que foram a origem de grandes revoluções não desapareceram. Persistem. A exploração do homem e o desprezo por valores criados em milénios de civilização assumem um nível assustador.
Passar da defensiva à ofensiva, no âmbito de um novo internacionalismo, é uma exigência do nosso tempo, inseparável da necessidade de garantir a continuidade da vida. E nesse combate a nós, comunistas, cabe um papel insubstituível
Serpa, Julho de 2008
Referências bibliográficas
Charles Bettelheim, Les Luttes de Classes en URSS, 1ère période ,1917-23,Ed.Seuil, Paris 1974,523 pgs.
Georges Gastaud, Mondialisation Capitaliste et Projet Communiste,299 pgs,, Ed Le Temps des Cerises,
Para Alem do Capital, O Poder da Ideologia e O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico, de István Mészaros , Editora Boitempo , São Paulo
Fugir da História ,de Domenico Losurdo , Editora Revan, Rio de Janeiro, 2004.
Lenin e a Revolução , Jean Salem , Editora Expressão Popular, São Paulo,2008
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