Jornal dos Economistas. Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, agosto de 2008.
http://www.corecon-rj.org.br/pdf/je_agosto_2008.pdf
Entrevista - João Pedro Stédile (*)
P: Por favor, esclareça a natureza da ação do Ministério Público do Rio Grande Sul contra o MST.
João Pedro Stedile: Depois da eleição do governo conservador da Yeda crusius, um grupo de promotores direitistas do MPE, comprometidos ideologicamente com as forças mais reacionárias do estado, passou a se reunir para articular diversas ações judiciais que visavam criminalizar os movimentos sociais no campo, em especial o MST e os demais movimentos da via campesina. Chegaram a fazer uma ata de uma dessas reuniões aonde combinavam que a melhor forma de destruir o MST seria abrir processos, que: impedissem a continuidade de acampamentos, pois eles seriam a nossa força organizada e mobilizável; impedissem que se realizassem marchas pelas estradas e a forma seria impedir que as famílias levassem crianças juntos, aí ficaria mais fácil a policia reprimir; tentassem fechar as três escolas que o MST mantém de formação técnica e que funcionam em convênio com escolas publicas legalizadas; cadastrassem todas as famílias já assentadas, para medir seu grau de produtividade; e instalassem processos criminais contra as principais lideranças.
A reunião se realizou, pasmem, dia 10 de dezembro de 2007, dia dos Direitos Humanos, e durante todo o ano de 2008, foram executadas várias ações judiciais a pedido desses promotores contra o MST, que resultaram em despejos ilegais de acampamentos e perseguições. E inclusive, num dos despejos realizado em março de 2007, houve prática massiva de tortura contra as mulheres acampadas, por parte da Brigada Militar. Os fatos foram denunciados por uma promotora pública, que instaurou processos contra os comandantes da Brigada. O processo foi arquivado e a promotora, diante de ameaças de morte por telefone, teve que passar todo ano, até poucos dias, “estudando” na Espanha, a conselho de seus superiores.
Nós, na época, não entendíamos tanta perseguição, com tantos processos. Agora, passamos a compreender as verdadeiras motivações.
Essa articulação foi tão sórdida, que eles colocaram que a ata deveria se manter em sigilo de justiça. Mas um deles, por desatenção, incluiu a ata, num dos processos que tentou incriminar nossas lideranças. Com isso, o caso veio a publico, e aí se desvendou o mistério. O procurador geral do Ministério Público do estado teve que denunciar que não era a posição oficial do MPE, e que se tratava apenas de uma iniciativa isolada de alguns promotores. E como desagravo ao MST, eles promoveram inclusive uma visita pública de alguns procuradores e parlamentares a um assentamento e acampamento do MST.
Por outro lado, essa articulação dos promotores servia de base para que a Brigada Militar aumentasse sua sanha repressiva, que estava combinada com a nomeação do coronel Mendes, como comandante geral, um homem claramente identificado com as idéias fascistas, que está partidarizando a atuação da corporação. E transformou a polícia militar num cão de guarda dos interesses das empresas transnacionais no Rio Grande do Sul. Qualquer manifestação pública, qualquer ocupação de terra, greve ou passeata de estudantes ou professores, é “exemplarmente” reprimida com uma violência descomunal, que já levou diversos companheiros à UTI e à prisão.
P: Como o senhor avalia esta ação? Que interesses estão por trás deste esforço do MP gaúcho?
R: Nossa avaliação é de que está havendo uma mudança no poder político no Estado do Rio Grande do Sul. Em anos da ditadura, o poder político da velha Arena-PP se baseava na pequena agricultura e na Igreja Católica conservadora. Depois, com a redemocratização, o PMDB teve sua base social no pequeno empresariado e na agricultura moderna. Mais tarde, o PT ganhou força baseado nos trabalhadores da cidade e do campo. E nos últimos, a economia gaúcha foi transferida para poucos e grandes grupos econômicos vinculados ao capital internacional. Na indústria, houve uma quebradeira das pequenas e médias indústrias, de consumo de massa, como calçados, vestuário, material esportivo e móveis. E predominou a grande siderúrgica, que é um monopólio do Gerdau. E as fábricas de máquinas agrícolas, todas elas vinculadas ao capital estrangeiro, mais a General Motors com sua fábrica. Na área de fertilizantes, que havia tradição no estado, tudo foi desnacionalizado, e hoje apenas três empresas transnacionais controlam todo o processo. E na agricultura, a Monsanto, a Nestlé e as papeleiras Stora Enso, Votorantim e Aracruz, tomaram conta.
O governo Yeda Crusius representa esses interesses econômicos das empresas transnacionais. Mas ela não tem nem partido, nem base social. Então, para se eleger, se apoiou em esquemas corruptos, que envolveram o Detran, o Banrisul e as empresas, para levantar milhões e conseguir ganhar as eleições, como está documentado numa CPI e num inquérito da Policia Federal. E se mantém graças ao monopólio da mídia, representado pelo grupo RBS/Rede Globo.
Diante desse cenário, os grupos sociais que se mobilizaram continuando suas lutas foram a Federação dos Metalúrgicos, os professores e os movimentos da via campesina. Então, o governo Yeda voltou sua máquina dos promotores direitistas do Ministério Público e a Brigada Militar para reprimir esses movimentos e derrotá-los. Felizmente, a opinião pública gaúcha está recebendo as informações através de rádios comunitárias e de outras formas, e se deu conta de toda essa porcalhada que representa o governo Yeda Crusius.
Mas como estamos em descenso do movimento de massas, em geral, e com os partidos da esquerda eleitoral, como o PT e o PSOL, mais preocupados com as eleições municipais, não foi possível realizar um grande movimento de massas, que conseguisse o necessário impeachment da governadora.
P: Que providências o MST tomou ou vai tomar para se contrapor à ação?
R: Bem, nós estamos atuando em várias frentes. A prioridade número um é denunciar a repressão da Brigada Militar, e impedir esse processo permanente de criminalização dos movimentos sociais do estado.
Em relação ao Ministério Publico Estadual, já conseguimos barrar a ação daquele pequeno grupo de não mais do que cinco, que se articulou por motivação ideológica. Basta dizer que um deles, ao se expor na imprensa, disse que o MST, além de estar vinculado às FARC, deveria pedir socorro ao seu chefe maior, que seria o presidente Lula.
O mais oneroso, e que gasta mais energia, é que estão em curso ainda diversos processos, nos quais nossos advogados precisam atuar, embora tenhamos contado com a solidariedade de todas as entidades e da opinião pública nacional. Para que os leitores tenham uma idéia, o MPE recebeu 911 mensagens com críticas de entidades do Brasil e do exterior.
Agora, o mais grave é o processo que outra promotora pública federal se achou no direito de abrir, que enquadra oito companheiros militantes do MST na Lei de Segurança Nacional, na comarca federal do município de Carazinho. É um absurdo tentar impedir a luta pela reforma agrária enquadrando numa lei famigerada da ditadura militar. E o processo está correndo em segredo de justiça, bem aos moldes da ditadura. Nossos companheiros já foram ouvidos. Nós arrolamos 80 testemunhas para provar que a luta pela reforma agrária é um direito. Arrolamos até o Presidente da República e muitas autoridades para eles dizerem o que pensam ao juiz. E estamos contando com a solidariedade do grande jurista Nilo Batista, aí do Rio de Janeiro, que está nos defendendo como advogado neste processo.
P: Como o senhor analisa a política agrária destes cinco anos e meio de governo Lula. Onde houve avanços e retrocessos? Como é o balanço de deste governo em relação aos governos anteriores?
R: O governo Lula fez uma clara opção pelo agronegócio. Isso ficou evidente quando ele nomeou o Roberto Rodriguez para ministro da agricultura, mesmo tendo ele feito campanha para José Serra. Ele seria o ministro da agricultura do Serra. E agora nomeou o Stephanes, velho militante da Arena. O governo caiu na ilusão de que aumentar as exportações agrícolas do agronegócio seria benéfico ao país. Ora, nosso país passou 400 anos no modelo agro-exportador, e só produziu pobreza e desigualdade social.
Exportação de matérias primas não desenvolveu nenhum país do mundo. Ao contrario, é justamente o mecanismo que o grande capital internacional usa para espoliar nossas riquezas naturais. Basta lembrar apenas um dado: a Embraer, nossa indústria de ponta, exporta ao redor de 5 bilhões de dólares por ano. Isso é um valor superior a todas as exportações anuais de carne bovina e derivados, resultantes da exploração de 240 milhões de hectares e de um rebanho de 250 milhões de cabeças de gado!
Por tanto, o balanço é negativo para os trabalhadores rurais, porque o que avançou foi um novo modelo de produção agrícola, que é o agronegócio. O agronegócio é a aliança entre os grandes fazendeiros, capitalistas brasileiros, com as empresas transnacionais do agro, que controlam os insumos agrícolas, o mercado e os preços. E fica para os brasileiros o passivo ambiental, a super-exploração de nossa mão-de-obra e uma parte da mais valia gerada na agricultura. Mas o volume maior fica com as empresas transnacionais.
P: Que mudanças importantes aconteceram neste período que apontem para um novo modelo agrário e agrícola?
R: Como disse, não houve mudanças estruturais. Ao contrário, o modelo do agronegócio se fortaleceu. Para os camponeses e os pobres do campo, o governo atendeu com medidas de compensação social. Essas medidas foram basicamente levar luz elétrica para todos no campo, o atendimento da bolsa família para os mais pobres, e o aumento do volume de recursos do credito do Pronaf para os camponeses que já estão integrados no mercado, que são apenas 25% do total das quatro milhões de famílias. Também foram positivos outros dois programas governamentais, embora restritos. O Pronera, que aumentou a possibilidade de filhos de camponeses entrarem na universidade, e o programa de compra de alimentos pela Conab, embora com poucos recursos.
Mas, repito, nenhum desses programas, embora positivos, afetam a estrutura da propriedade da terra e da produção. Elas continuaram se concentrando cada vez mais, tanto a propriedade da terra, como o controle da produção pelas empresas transnacionais.
P: Há espaço e condições para que o grande agronegócio e a agricultura familiar prosperarem simultaneamente no Brasil?
R: Primeiro é preciso entender que o agronegócio é um modelo de organização da produção agrícola que representa a aliança entre os fazendeiros e as empresas transnacionais. E, portanto, como modelo de produção é incompatível com a reforma agrária e a agricultura familiar.
No entanto, nós poderemos ter uma política agrícola e agrária que priorize a reforma agrária e a organização da produção de alimentos baseados na agricultura familiar, e ter ao mesmo tempo médias e grandes propriedades rurais produzindo para o mercado interno. Mas ter médias e grandes propriedades não significa adotar o modelo atual do agronegócio, que prioriza a monocultura, a associação com as empresas estrangeiras e as exportações.
P: O governo Lula trabalhou intensamente para que houvesse acordo em Doha. Caso aprovado, quais seriam os impactos para a agricultura e para um projeto nacional de desenvolvimento?
R: Felizmente o Brasil foi derrotado, porque a proposta brasileira se resumia a abrir mais ainda o mercado brasileiro para as indústrias européias. E em troca, poderíamos aumentar as exportações de matérias primas agrícolas para a Europa. Ou seja, a proposta seria a recolonização de nossa economia. Não sei como nossa burguesia industrial é tão burra, que não reagiu. Na verdade, é porque ela já está totalmente associada ao capital estrangeiro.
E infelizmente, a política externa do governo Lula saiu chamuscada, porque se sabe que os governos da Índia, China, África do Sul, Argentina e de todo terceiro mundo saíram putos da cara com a nossa política. Ou seja, o seu Celso Amorim perdeu feio. Saiu isolado, puxando o saco dos interesses do norte. Isso é o que nos dizem nossos parceiros dos movimentos da via campesina internacional, que acompanharam as negociações.
P: O Presidente Lula está comprometido com o desenvolvimento da produção de etanol e age para abrir mercados para este produto no exterior. Este esforço é positivo para o Brasil? Como o senhor avalia
os investimentos de grupos internacionais na produção de etanol no Brasil?
R: A Via campesina é a favor da produção da agro-combustíveis como uma forma de ir amenizando os problemas da poluição do petróleo e de seu alto preço. No entanto, defendemos a política da soberania energética. Ou seja, precisamos estimular que os agro-combustíveis sejam produzidos em apenas 10% da área de cada agricultor, evitar a monocultura, não substituir os alimentos, e instalar pequenas e medias usinas de energia em todas as comunidades e municípios do interior. Assim, cada município poderá ficar soberano em energia, não depender mais do petróleo, e termos energias alternativas. Também podemos ir combinando com pequenas e médias hidrelétricas, energia solar e eólica. Mas tudo isso depende de um novo projeto de desenvolvimento do país, que o atual governo nem sonha em debater.
Quanto aos malefícios da poluição do petróleo, eles somente se resolverão quando substituirmos a atual matriz de transporte individual nas grandes cidades, pelo transporte público de qualidade, baseado em metrôs, trens e ônibus elétrico -- e inclusive estímulo e apoio para o uso de bicicletas.
Produzir etanol para exportação, na base da monocultura da cana, com o controle do capital estrangeiro, como está acontecendo, é uma burrice econômica e um crime contra o meio ambiente. Desta forma, destrói-se a biodiversidade, só se consegue produzir cana com alto uso de agrotóxicos, o que a médio prazo vai afetar o clima, o aquecimento global e o meio ambiente.
P: A Constituição de 1988 está completando 20 anos. Em que aspecto o seu efetivo cumprimento contribuiria para o avanço da reforma agrária no Brasil?
R: Constituição Brasileira de 1988 foi uma conquista do povo brasileiro e foi resultado de uma correlação de forças sociais que era favorável aos trabalhadores e por isso conseguimos avançar tanto. Para todos os trabalhadores da cidade e do campo havia muitas conquistas. Depois, o governo FHC passou o tempo inteiro tentando desmanchar e conseguiu eliminar muitos direitos.
Sobre a reforma agrária, foi incluída a armadilha da proibição de desapropriar terras produtivas, levando cada fazenda desapropriada para os tribunais. Mas isso não foi um problema. O problema maior é que de um lado estamos num descenso do movimento de massas, que não consegue então ter forças para aplicar nem sequer a Constituição, e de outro lado não temos um programa massivo de reforma agrária por parte do governo.
Então, os movimentos sociais do campo ficaram sozinhos. E o que o governo está fazendo são medidas de compensação social, um assentamento aqui e outro lá, e substituindo famílias que desistiram em assentamentos antigos. Mas a concentração da propriedade da terra continua aumentando, mais do que nos tempos da ditadura, e agora com um agravante: muitas empresas transnacionais estão comprando terras. Como foi denunciado pela Folha de São Paulo, mais de 20 milhões de hectares já teriam sido desnacionalizados. Vejam que somente o testa-de-ferro do Dantas já tinha comprado 600 mil hectares no Pará. Lá no Rio Grande do Sul, três empresas papeleiras compraram em três anos quase um milhão de hectares, enquanto o Incra desapropriou apenas 130 mil hectares em 25 anos de reforma agrária.
P: Na sua avaliação, houve alguma iniciativa nos últimos anos que aponte para uma diminuição da dependência externa e do controle do capital financeiro?
R: Tudo ao contrário. Os economistas de todas as correntes de pensamento reconhecem que a política econômica do governo Lula é a mesma da receita neoliberal aplicada pelo FHC, com apenas algumas nuances. Na essência, o pólo central de acumulação de capital da economia brasileira continua centrado no capital financeiro, que se apropria da maior parte da mais valia produzida, através de altas taxas de juros e da compra de ações das empresas mais lucrativas. Daí as duas maiores empresas brasileiras, a Petrobras e a Vale, ambas têm seu capital social controlado por acionistas privados e estrangeiros, que, todos sabemos, na sua maioria é capital financeiro aplicado nas bolsas. E os juros que o governo paga da dívida pública interna, sempre superior a 200 bilhões de reais por ano, são um poderoso mecanismo de transferência de renda de toda população brasileira que recolhe seus impostos para a Receita Federal, e de lá vai para os bancos. E é também um poderoso mecanismo de sustentáculo do capital financeiro.
O próprio Marcio Pochmann, presidente do IPEA, tem revelado que a distribuição de renda está acontecendo apenas entre a renda dos trabalhadores. Ou seja, entre os que vivem de salário, a renda está mais bem distribuída, sobretudo porque os mais pobres melhoraram com o Bolsa Família e o aumento do salário mínimo, que é positivo. Mas a distribuição da renda na sociedade se mede pela distribuição entre a renda do capital e a renda do trabalho. E o capital está controlando mais de 60% de toda renda, nunca acontecido antes na história econômica desde a colônia.
Se olharmos para as maiores empresas, que controlam a produção e o comércio no Brasil, nossa economia está cada vez mais controlada pelas empresas transnacionais. As 200 maiores empresas controlam a maior parte de nossa economia. Na agricultura, as 50 maiores empresas controlam mais de 60% do PIB agrícola. E a maior parte delas é estrangeira. A economia brasileira está sendo recolonizada, agora sob a égide do capital financeiro e das empresas transnacionais.
http://www.corecon-rj.org.br/pdf/je_agosto_2008.pdf
(*) Joao Pedro Stedile é economista, formado pela PUC-RS, posgraduado pela UNAM- México, inscrito no CRE-RS, e membro da coordenação nacional do MST e da Via campesina Brasil
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