Discursos de autoridades cubanas em encontro de artistas tocam em questões polêmicas entre os cubanos e ilustram o momento político de Cuba de intenso debate político
Gerardo Arreola
de Havana (Cuba)
La Jornada
“A dupla moral, as proibições, uma imprensa que não reflete nossa realidade como queremos, uma desigualdade indesejada, uma infra-estrutura deteriorada são as feridas da guerra, mas uma guerra que ganhamos”. Assim resumiu o vice-presidente Carlos Lage o quadro da situação social em Cuba após a crise de quase duas décadas pela queda da União Soviética.
Lage discursou para o sétimo congresso da União dos Escritores e Artistas de Cuba (Uneac), na qual o historiador Eusebio Leal disse que as recentes decisões oficiais que eliminaram proibições e promoveram mudanças na agricultura não são um assunto “cosmético”, mas sim estão tocando em questões tão profundas como “aquelas que em 1959 e, mesmo antes, minha geração viu como a mais alta aspiração: a justiça para os camponeses”.
Na sexta-feira (dia 4), o presidente Raúl Castro assistiu o fechamento da reunião da Uneac e disse que leu resumos de todas as opiniões expressadas no encontro. O Chefe de Estado manifestou que concordava com a maioria das posições, mas que também divergia de algumas outras. “Mas para isso lutamos, ou seja, para essa diversidade de opiniões. Vocês me escutaram dizer que da maior divergência vão sair as melhores decisões”, acrescentou.
Críticas e demandas
A Uneac, que reúne a cerca de 8 mil artistas, elegeu presidente para seus próximos cinco anos o ensaísta, poeta e etnólogo Miguel Barnet – especialista em relações de cultura africana na América Latina e Caribe. A imprensa estrangeira não teve acesso ao encontro, mas algumas intervenções foram difundidas integralmente, como as de Lage e Leal. As páginas dos meios locais indicam que, entre os assuntos mais debatidos, estiveram questionamentos sobre o futuro das jovens gerações, fortíssimas críticas à televisão e ao sistema educativo e demandas dos intelectuais de maiores espaços institucionais de debate e acesso a novas tecnologias.
Os discursos do vice-presidente e do historiador mostraram traços do momento que Cuba vive, marcado por um ambiente social deliberativo que ganhou força nos últimos seis meses, um reconhecimento oficial, explícito e público, de problemas internos e mudanças na política oficial que vão desde decisões administrativas e incentivos ao mercado interno até uma nova reforma agrária.
Ao citar fenômenos como a “dupla moral” – respaldar publicamente o governo e contradizer na prática privada esse discurso – e as proibições – como as recém eliminadas para os cubanos se hospedarem em hotéis de primeira categoria ou ter telefones celulares –, Lage sugeriu que esse foi o custo inevitável da crise dos anos 90.
O vice-presidente assinalou que a situação tem que ser analisada com o antecedente da década passada, “de ausência dramática de alimentos e medicamentos, de ruas desoladas, de noites escuras, de duas moedas em circulação”. Desde o colapso soviético, Cuba conseguiu sustentar um ideal de justiça "que já não era possível defender", acrescentou. "Conseguimos, para espanto de todos e inclusive nós mesmos, porque cremos no que defendemos. Porque não tememos e tivemos Fidel".
O discurso do historiador Leal foi transmitido integralmente pela televisão cubana à noite. No Congresso, o historiador foi acolhido com larga ovação e produziu um impacto que se disseminou nos dias seguintes em conversações nas ruas. Houve surpresa quando o historiador reivindicou seus filhos imigrantes. “Eu não me envergonho dos que estão fora, porque meus filhos estão fora. Jamais me envergonharei de minha condição de pai, nem os retirarei o nome de cubanos. Eles decidiram seu caminho, sempre e quando não usem armas contra a pátria que os viu nascer ou levantem sua mão contra o que lhes deu o nome”.
Durante quase três décadas, o governo cubano se manteve hostil contra os imigrantes, a quem lhes chamou de “gusanos” (tipo de vermes), sem distinguir entre quem atuava violentamente contra a ilha e o resto dos imigrantes. No final dos anos 80, o governo abriu o diálogo com alguns e, na prática, a relação ficou menos tensa com a maioria. O discurso de Leal, no entanto, chegou a um ponto nunca antes levantado publicamente por um funcionário.
Leal acrescentou que “todos estamos esperançosos” porque o país “assume que o que até ontem não foi conveniente ou prudente, hoje é necessário”. O historiador convidou os intelectuais a se prepararem para “o novo destino do país”.
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