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O Pensamento Revolucionário: da burguesia ao proletariado
O pensamento revolucionário burguês, a partir do século XV até o século XIX, se desdobra em ampla ediversificada frente de disciplinas, de regiões do trabalho intelectual. Na frente da Filosofia, afirma a primazia da Razão diante da Fé, o direito à dúvida metódica, à pesquisa, o afastamento de quaisquer limites de natureza sobrenatural para a esfera do conhecimento. Na frente do Direito, com o jusnaturalismo, afirma os direitos naturais do homem, que nenhuma instituição social pode retirar.
Na frente da teoria do Estado - que é explicada de várias maneiras, mas unânime na idéia de que não pode haver um Estado sobre-humano, de origem divina — o novo pensamento burguês declara que o Estado nasce da sociedade, por conseguinte, deve ter tais ou quais compromissos com a própria sociedade. Este processo discursivo vai terminar, como se sabe, na teoria do contrato social, de Rousseau, depois de passar por Locke, Spinoza, Hobbes e outros. É a afirmação, portanto, de um direito igualitário dos cidadãos, em oposição aos diretos dos estamentos e dos privilégios estamentais. Cria-se o conceito moderno de cidadão, separa-se a ordem privada da ordem pública.
No terreno da Ética, a burguesia apresenta uma nova teoria das relações sociais, justamente a ética do indivíduo, que nela tem o seu centro e soberano. Sob a nova perspectiva, os interesses individuais, ao invés de conflitantes, tendem a se complementar. Desta harmonização dos interesses individuais deveria surgir a própria harmonia social.
E finalmente a Economia Política, criada por esse pensamento revolucionário burguês. Uma teoria econômica que veio para se afirmar contra a velha ordem feudal dos privilégios, dos monopólios, dos regulamentos e das prescrições restritivas. Por isto mesmo, proclama, como a mais natural e conveniente para os homens, a liberdade da atividade econômica, a soberania do mercado, a tendência espontânea do mercado de regular os diferentes interesses individuais dos vários produtores. Para a burguesia, que então afirmava sua supremacia, os diversos tipos de coação extra-econômica já eram dispensáveis. Tanto para ela, como para a classe dos trabalhadores — os operários que já estavam nas manufaturas e iriam entrar nas fábricas com a Revolução Industrial — bastava a coação meramente econômica. O fato dos trabalhadores estarem despossuídos dos meios de produção e de subsistência os forçaria, pela própria necessidade, pelo hábito criado com o passar das gerações, pela obrigação desde a infância, a procurar as fábricas e a considerar natural a circunstância de viver de um salário. Salário que seria regulado, no final das contas, pela existência do exército industrial de reserva, combinado com a procura e a oferta de mão-de-obra no mercado.
Em face disso, o que deveria ser o Estado para a burguesia revolucionária? Um Estado liberal, apenas com a função de fazer cumprir as regras do jogo de mercado, porém não intervindo neste. Um Estado que puniria aqueles que infringissem as regras, aqueles que violassem justamente esta ordem burguesa, sinônimo de ordem pública. O Estado burguês não teria função econômica direta. Não faria como o Estado absolutista, promovendo fábricas, concedendo monopólios e privilégios.
Destoa desse pensamento, é claro, o próprio Hegel. Na sua Filosofia do Direito, o que ele apresenta é o Estado constitucional, mas não liberal, uma vez que escrevia como filósofo de um Estado ainda atrasado — naquele momento — sob o aspecto da revolução burguesa.
Estas são as frentes principais do pensamento revolucionário burguês. Talvez eu tenha omitido alguma delas, mas acredito que apresentei as mais importantes.
Em que frentes se desenvolve o pensamento revolucionário proletário no final do século XVIII — quando emerge a Revolução Francesa — e no transcurso do século XIX, chegando aos nossos dias?
Passada a fase das utopias — que constróem idealmente sociedades coletivistas autogestionárias — e entrando na obra dos fundadores do socialismo científico, de Marx e Engels, podemos observar que o pensamento do proletariado revolucionário e sua elaboração teórica se apresentarão também de maneira esquemática nos seguintes terrenos:
Em primeiro lugar, na crítica da Economia Política. Esta é a primeira frente, a principal, à qual se dedicará o grande fundador do pensamento revolucionário do proletariado: Marx, com a colaboração de Engels. Pela própria sistemática da sua concepção geral do materialismo histórico, que confere a instância fundamental ao que chamamos de fator econômico, Marx considerou que devia atacar primeiramente a Economia Política burguesa, que deveria criticá-la. Desta crítica surge o desvelamento das contradições do capitalismo, surge uma nova teoria econômica do sistema capitalista, em que se demonstra que este sistema não pertence à natureza da espécie humana, e, por conseqüência, é histórico. O capitalismo é um sistema que surge em determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas do próprio homem. Por conseguinte é transitório e deve desembocar — pelo desenvolvimento das contradições internas — na substituição por outro sistema, que seria o sistema socialista.
O pensamento do proletariado se apresenta, portanto, em primeiro lugar através da crítica da Economia Política burguesa e de uma teoria econômica oposta a ela. É a crítica principalmente de Adam Smith e de Ricardo, que vai servir de base para o desenvolvimento das teorias econômicas posteriores: Kaustsky, Rosa Luxemburg, Lenin, Hilferding, Bukharin e os contemporâneos. O pensamento econômico marxista assumiu, portanto, um lugar central na elaboração de uma concepção revolucionária do proletariado. Apoiados no terreno preparado pelo idealismo clássico alemão e já atuando como intelectuais orgânicos dentro do movimento operário, Marx e Engels puderam lançar os fundamentos da dialética materialista e de uma teoria geral da sociedade. Concepções necessárias à edificação de um pensamento revolucionário que se propunha a ganhar o aval de ciência.
No entanto, é sintomático que Marx se concentrasse nos trabalhos de Economia Política e só desenvolvesse a teoria do materialismo dialético e histórico no corpo das obras econômicas e historiográficas. Já se disse que O Capital é a Lógica de Marx. Em parte, e somente em parte, Engels procurou suprir esta lacuna. Daí que a segunda frente mais importante no desenvolvimento do pensamento do proletariado viesse a ser a teoria da revolução. É que, neste terreno, as indagações vinham com a imposição da urgência: o que era a revolução na época das contradições do capitalismo? Qual a sua trajetória previsível? Que papel teria nela o proletariado em face das outras forças sociais?
Tais indagações vão constituir tema de constante polêmica no movimento comunista até os dias de hoje.
Desdobrando-se da teoria da revolução, vem a teoria do partido revolucionário. Esta ainda não tem lugar elaborado em Marx e Engels. Mas, em seguida, com a II Internacional, assume lugar proeminente. São sobretudo os teóricos russos, com Lenin à frente, que vão erguer o corpus da teoria do partido revolucionário. Teoria que, nas suas origens, ficou marcada pelas condições peculiares da luta revolucionária na Rússia czarista e, mais tarde, da construção do socialismo na União Soviética.
A teoria do Estado se segue em ordem de importância no pensamento revolucionário do proletariado. Contudo, não podemos deixar de concordar com Norberto Bobbio que esta é uma frente insuficientemente abordada e menos avançada do que as outras. A tal ponto que, ainda segundo Bobbio, não existiria uma teoria do Estado no universo marxista.
Mas o próprio pensador italiano reconhece que se Marx não se dedicou à teoria política com tanto afinco quanto à teoria econômica, o que nos legou já é suficiente para lhe dar um lugar eminente, o lugar de um verdadeiro marco na evolução das idéias políticas. Pois é de Marx a tese de que o Estado não é uma instituição para o bem comum, acima das classes sociais, conforme idéia generalizada no pensamento político anterior. Marx foi o primeiro a declarar que o Estado é o Estado de uma classe particular. Esta ligação orgânica do Estado com uma determinada classe, com a classe dominante, é essencial no pensamentopolítico marxista, é a contribuição específica mais importante de Marx. O fundador do socialismo científico inverte a relação de Hegel, de Estado-sociedade civil, do Estado criador da sociedade civil, para a sociedade civil-Estado. A sociedade civil, como o reino em que os indivíduos realizam suas necessidades materiais, suas necessidades econômicas, é que será a criadora do Estado, a base do Estado. No entanto, Marx, como Engels, assim como Lenin, irão dar ênfase sobretudo ao Estado como instrumento de coerção — o Estado é a coerção legítima. Daí poder funcionar como regulador dos conflitos sociais entre as várias classes, porém como um regulador que age de maneira a preservar a ordem existente e o modo de produção em vigência, assim como a formação social que confere supremacia à classe dominante. No caso, a classe dominante burguesa.
Mesmo liberal, este Estado não se ausenta da vida econômica. Sua ausência é uma ilusão ideológica, pois o Estado liberal intervém na ordem econômica ainda que evite a gestão direta de empresas.
Marx dá novo sentido à palavra ditadura, ao falar em ditadura de classe. Originalmente, o termo ditadura vem da antiga Roma, designando um governo necessariamente provisório, admitido em situações conflitivas, convulsivas, que deveria pôr ordem na vida pública, mas por um prazo determinado, retirando-se em seguida. O termo foi adotado na literatura política, com esta acepção de transitoriedade, até Marx. Para Marx, ditadura de classe será sinônimo de dominação de classe, designando uma situação duradoura.
Por que a classe dominante exerce dominação de maneira discricionária, como uma ditadura? Porque ela faz o que lhe interessa e para isso não há limite real na lei. As leis obedecem aos interesses da classe dominante e se violam também no interesse da classe dominante. Mas a ditadura, por sua vez, pode ser exercida sob diferentes formas políticas. No caso da burguesia, tanto se exerce sob a forma de um regime plenamente discricionário, como através da república democrática, através de governos representativos e que, na linguagem usual, seriam aparentemente o oposto da ditadura.
Em virtude de semelhante ambigüidade, o termo ditadura dá origem a numerosas confusões. O fato de, na linguagem mais usual, nós só o empregarmos como expressivo de governos discricionários, não nos permite compreender que, na terminologia de Marx, ele tem sentido de discricionário para a dominação burguesa geral, não se restringindo à forma que esta assume nos governos autoritários. A ditadura de classe pode se apresentar também sob a forma de governos parlamentares representativos e constitucionais, obedientes à legalidade.
Com relação ao novo Estado socialista, a teoria política foi pouco elaborada, tanto por Marx e Engels, como por Lenin. Salienta-se, aí, a idéia da destruição do aparelho do Estado burguês, e a sua substituição por um novo aparelho de Estado. Em seguida a idéia de deperecimento do Estado, ou seja, da sua extinção gradual. O que significa, de um lado, a recusa da concepção reformista de que o Estado burguês pudesse adaptar-se às necessidades da futura dominação do proletariado. E, por outro lado, a recusa do princípio do anarquismo, segundo o qual o Estado deve ser extinto de uma vez de maneira imediata, assim que for derrubada a burguesia. Segundo os teóricos marxistas, sendo a revolução um ato autoritário por excelência, o proletariado, que se apossa do poder, não dispensará o Estado como instrumento de afirmação desse mesmo poder. O proletariado tem necessidade do Estado, o qual não pode desaparecer exatamente no momento da revolução. Trata-se de um novo tipo de Estado, que necessariamente deve atravessar uma transição: a da extinção gradual. Talvez pela previsão de que o Estado do proletariado fosse necessário, mas transitório, destinado a se extinguir, é que não se teorizasse sobre o que seria este Estado.
Esta seria uma razão de ordem teórica. Existem também motivos de ordem histórica, pela forma como ocorreram as revoluções, primeiro na URSS, depois em outros países do Leste Europeu, na China, em Cuba etc. Neste ponto, eu dou razão a Norberto Bobbio. O que aconteceu, na realidade, em todos esses países, é que o Estado, ao invés de realizar um processo de deperecimento, iniciou um processo de expansão. Porque, ao contrário do previsto por Marx e Engels, o Estado assumiu os bens de produção em nome da sociedade. Com isso, adquiriu um poder que nunca teve antes em nenhuma sociedade burguesa. O Estado se expandiu mais do que se poderia prever. O processo de sua extinção não se iniciou ainda em nenhuma sociedade do chamado socialismo real e uma teorização a respeito ainda está por ser feita.
Jacob Gorender é jornalista, historiador autodidata e professor-visitante do
IEA em 1989.
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