Para defender a “sociedade”, ataquemos a sociedade; para garantir a “democracia”, vamos restringir a democracia. Não, estamos diante de algo muito mais simples de ser entendido: a lógica que beneficie uma parte bem pequena da sociedade, a burguesia e seus negócios, se choca com os interesses diretos daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho.
MAURO IASI*
O governo da presidente Dilma, acossado e sem resposta ao
funcionalismo púbico e greve, a não ser a intransigência e prepotência
de quem escolheu direcionar o fundo público em auxílio ao capital
privado em detrimento do setor público, resolveu tirar do armário o
arsenal de projetos de lei que limitam o direito de greve.
Quando realizávamos os debates na época da elaboração da atual
Constituição, um jurista renomado aconselhava aos sindicalistas que a
melhor redação era: “a greve é um direito”. Alertava-nos que qualquer
detalhamento ou normatização seria, via de regra, uma manifestação dos
interesses de cercear e limitar este direito e nunca viria em favor dos
trabalhadores. Parece que tal conselho segue sábio e útil.
O que se alega é a necessidade de “disciplinar”, “normatizar” a
utilização do recurso da greve em nome de defender os interesses da
“sociedade”, daí os dispositivos indicados de restringir tal utilização
em setores estratégicos, garantir o funcionamento mínimo de serviços
essenciais, limitação do exercício do direito em “épocas de eventos
internacionais”, a garantia de medidas de punição, como corte de ponto e
substituição de servidores.
Em primeiro lugar é preciso que se diga que tais medidas, por trás do
manto enganoso e ideológico da suposta “defesa da sociedade”, visam
defender o governo e por trás dele os interesses de classe que
representa da reação dos funcionários públicos à desastrosa política
implementada de reforma do Estado e de desmonte de serviços públicos.
A onda de greves que vivenciamos tem suas raízes não na intolerância
de funcionários dispostos a abusar do direito de greve para garantir
mesquinhos interesses corporativos, pelo contrário, é a reação esperada
de um setor que em sua maioria (guardadas honradas exceções) deu um voto
de confiança ao governo e foi ludibriado.
A raiz das greves que presenciamos pode ser encontrada no adiamento
injustificável do estabelecimento de uma data base para o funcionalismo,
no não cumprimento da promessa de reajustes anuais que corrigiriam a
inflação e do fracasso da mesa permanente de negociação que deveria ser
um canal de negociação permanente do governo com os diferentes setores
do funcionalismo.
A Secretaria de Relações do Trabalho vinculada ao Ministério do
Planejamento e Gestão especializou-se nas manobras protelatórias,
engodos e escaramuças cuja única finalidade foi retardar o atendimento
das demandas apresentadas, como, por exemplo, a reestruturação das
carreiras, o enfretamento de distorções salariais e a mera implantação
de diretos adquiridos.
O que nos espanta não é a força e o vigor da greve que vimos em 2012,
mas porque ela não ocorreu antes. De um lado, no caso de muitos setores
do funcionalismo, vimos a boa vontade e a aceitação da tese governista
que se estaria arrumando a casa através de uma macro política econômica
combinada com uma reforma do Estado que, garantindo um suposto e mítico
crescimento econômico sustentável, levaria na sequência a uma
valorização do serviço público.
Essa “boa vontade” foi operada com o apassivamento de representações
sindicais através de métodos diretos e indiretos de cooptação que foram
desde a participação direta no governo, passando pelo atendimento de
demandas burocráticas no caso das centrais sindicais, até a liberação de
recursos no balcão de projetos e verbas das diferentes áreas do
governo.
Não devemos menosprezar a estratégia do governo no sentido de criar
uma diferenciação profunda no governo entre carreiras que considerava de
estado e de ações e serviços que o governo implantou formas severas de
terceirização e precarização, dividindo o setor púbico.
No entanto, a eficácia de tais medidas encontrou seu limite no
agudizar da crise do capital e do desmoronar do sonho de um capitalismo
regulado e sustentável. A crise cobra do governo a liberação do fundo
público para salvar o capital e os funcionários públicos se vem diante
de uma resposta que suas demandas serão novamente adiadas. Quando a
economia cresce os funcionários tem que dar a sua cota de sacrifício
para manter a política de superávits primários e estabilizar a economia
para que ela continue crescendo, quando entra em crise tem que ser
sacrificados para que a economia privada não caia tanto.
Com medo de estabelecer uma data base e os ajustes anuais o governo
operou com o calendário orçamentário, o que lhe permitiu negociar em
separado com os diferentes setores do funcionalismo, dividindo para
reinar como os velhos romanos, e chantageando com as amarras
orçamentárias e a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Este ano o tiro saiu pela culatra e o calendário orçamentário virou a
data base unificada do funcionalismo. Puxados pela greve nacional dos
professores universitários, os demais setores, inclusive organizados
pelo sindicalismo governista, não tiveram outra forma de pressão que não
a greve para enfrentar a intransigência do governo.
Diante do movimento legítimo dos funcionários o governo, ao contrário
do que seria sensato, ou sejam, negociar, resolveu manter a arrogância,
não recebeu as entidades, de fato não negociou, o que foi decisivo para
que algumas greves se mantivessem por tanto tempo.
Os professores, por exemplo, entraram em greve em 17 de maio e só
foram recebidos no dia 13 de julho para depois de duas rodadas de uma
farsa de negociação o governo encerrar a farsa assinando um suposto
acordo com uma entidade que com dificuldade dizia representar cinco das
ciquenta e nove IFES em greve.
Como resolver este problema? Negociando com entidades realmente
representativas, cedendo no que for possível, reconhecendo que a
dimensão do movimento é proporcional à protelação e adiamento
injustificável no atendimento das demandas que se acumularam? Não, o
governo resolve enfrentar a questão da forma como os governos
autoritários agem: cerceando o direito de greve!
A raiz de todo autoritarismo pode ser encontrada no medo que os
governantes que representam interesses de uma minoria tem de seu povo. A
verdadeira universalidade por traz destas medidas temerárias que se
anunciam não pode ser encontrada no recurso de evocar os abstratos
“interesses da maioria da sociedade”, pelo contrário. Trata-se de uma
universalidade particularista tornada possível diante de uma suposta
ameaça que vem daqueles que lutam e resistem na defesa de seus direitos.
Como nos ensinou Leandro Konder ao tratar da ideologia de direita:
O próprio sistema em cuja defesa as classes dominantes se acumpliciam – um sistema que gravita em torno da competição pelo lucro privado – impede que as forças sociais em que consiste a direita sejam profundamente solidárias: elas só se unem para os objetivos limitados da luta contra o inimigo comum (Leandro Konder, Introdução ao Fascismo, 2009, São Paulo, Expressão Popular, pg. 28).
No caso presente o inimigo comum somos nós que lutamos, através dos
meios democráticos conquistados – como o direito de greve – na defesa
das demandas mais elementares como salários, condições de trabalho e
carreira. Não é a defesa da sociedade, mas a garantia para que o governo
a serviço do capital siga seu trabalho e que o capital tenha as
condições de continuar acumulando, condições necessárias para restringir
direitos, flexibilizar conquistas e precarizar a vida.
É preciso restringir o direito de greve para que o Brasil receba os
eventos internacionais e seu mar de recursos para saciar a fome de lucro
das grandes empreiteiras. Se o direito à moradia estiver no caminho,
façamos como se tem feito nas remoções no Rio de Janeiro: removamos este
obstáculo com retroescavadeiras acompanhadas por batalhões da polícia
militar. Se o direito de propriedade estiver ameaçado, a justiça garante
a remoção de milhares de famílias, como no Pinheiriho em São José dos
Campos. É preciso remover obstáculos à ordem burguesa e seu afã de lucro
– se no caminho estiverem alguns direitos, devem ser removidos.
Para defender a “sociedade”, ataquemos a sociedade; para garantir a
“democracia”, vamos restringir a democracia. Não, estamos diante de algo
muito mais simples de ser entendido: a lógica que beneficie uma parte
bem pequena da sociedade, a burguesia e seus negócios, se choca com os
interesses diretos daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho.
Para o bem da ordem os instrumentos da burguesia precisam ser
glorificados e mantidos, como seu governo, enquanto os instrumentos dos
trabalhadores precisam ser restringidos, como o direito de greve.
A formalidade democrática, cedo ou tarde, abre um paradoxo: ou os
trabalhadores no exercício de direitos formais cobram a substancialidade
de um novo patamar de direitos que digam respeito às suas reais
demandas, ou o capital incomodado com tal possibilidade começa a cercear
mesmo os direitos formais.
Mas os poderosos se enganam. Existe um elemento no direito que vai
além da forma legal que por ventura o reveste. Houve um tempo em que a
greve, assim como a organização sindical, era ilegal no Brasil – e nós
fizemos greves e conquistamos o direito de ter nossas organizações
sindicais. Eles que tornem a greve ilegal, isso não nos intimidará e nós
faremos greves. Então que cassem nossas organizações e nós as
reconstruiremos, contra a ordem e por cima das amarras das leis que
tentarão em vão revestir nossos direitos.
* MAURO IASI é presidente da Adufrj e membro da Comissão Política Nacional do PCB. Publicado em Brasil de Fato, 14 de setembro de 2012.
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