Publicado em 25 September 2010
Quase sempre nos vemos às voltas com gente se esforçando para justificar nossas misérias, tentando passar a outros as pílulas que melhor lhes servem de alívio às dores – ou de estimulante ao sadismo, em casos mais raros, sérios e graves.
Com o benefício da distância no tempo, vemos com muito mais intensidade os disparates de algumas destas justificativas. Vamos à década de 1880, em que se delineava a formação da república brasileira. Dentre as forças políticas que se puseram na luta contra a monarquia, o positivismo serviu de ideologia charmosa para encobrir permanências e simular uma ruptura, deixando os princípios de lado [1] e trabalhando um imaginário republicano de Ordem e Progresso. Juntamente ao debate sobre o melhor regime político, havia outro, mais candente ainda, sobre a abolição da escravidão no país e a incorporação da massa dos negros libertos à produção assalariada – tema que deixava muitas dúvidas na cabeça dos proprietários-coronéis, em especial quanto à Ordem e ao Progresso de seus negócios.
No Jornal do Comércio, em 1883, Miguel Lemos, presidente da Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, publicou o texto A Incorporação do Proletariado Escravo e o Recente Projeto do Governo com o intuito de responder cientificamente a estes receios. Defendeu o caráter pacífico dos africanos e seus descendentes, a sua afetividade, o que seria uma condição excelente para a transformação deles em trabalhadores assalariados. Nas suas palavras lemos:
“O africano é, naturalmente, venerador, e por isso submete-se; não é o medo, nem o interesse, que o mantém na escravidão, é o amor para com os senhores que eles reputam seus superiores. A submissão do africano é análoga à submissão do soldado ao general; repetimos, é fruto da veneração, e não do interesse [2]”.
Com veneração aos senhores, com adoração ao conforto da cela, o povo escravizado aparece aí estigmatizado como uma raça de essência escrava.
Mas se isto tivesse cabimento por que os escravizados eram tratados pelos senhores de engenho com a fórmula do PPP – pau, pão e pano? Em geral, assim que chegavam à propriedade, após serem comprados nos mercados, os cativos tomavam uma “surra disciplinadora” para jamais esquecerem-se dos riscos da desobediência aos seus senhores. Mesmo os clérigos católicos, defensores da moderação no tratamento dos
escravos, contra os excessos cometidos pelos senhores, mesmo eles acreditavam que somente a disciplina, o castigo e o trabalho poderiam controlar a superstição, a indolência e os maus modos dos africanos [3].
Alguém poderá então, com alguma malícia até, dizer que os cativos acabaram sofrendo o que se chama Síndrome de Estocolmo, a afeição da vítima pelo seu seqüestrador, ou o complexo de mulher de malandro, que acaba sentindo falta de apanhar. Eis então que surge outra justificativa, mais complexa e perversa que a de Miguel Lemos sobre a submissão à escravidão. Essa justificativa do mesmo modo não se sustenta, pois com
toda a crueldade das torturas às quais os cativos eram constantemente submetidos – não apenas em sua memorável recepção -, ainda assim a luta contra a escravidão por parte dos escravizados foi intensa e permanente.
Desse modo, não bastou a fórmula do pau, pão e pano, ou da disciplina, castigo e trabalho. Foi necessário criminalizar com toda a força a figura do cativo que não se enquadrava no perfil desejado de sujeito submisso (fosse ele submisso por “afeto”, fosse por medo e interesse). Os quilombos, aldeias formadas por escravos fugidos e outros marginalizados sociais, espalhavam-se pelas matas e montanhas em diversas regiões do país. Frente a isso, o posto de capitão do mato foi oficialmente criado na Bahia em 1625, para rastrear e capturar cativos foragidos, e em 1699 qualquer um que matasse um quilombola (o morador de quilombos) estaria isento de punições. O quilombola capturado vivo era marcado a ferro quente com um F no ombro, e se fosse
reincidente, diante desse atestado de antecedentes criminais, tinha uma orelha cortada [4].
Mais uma vez, então, encerro com questões:
Esse ódio voltado contra os que se desviam do imaginário de cordialidade e submissão, não segue de algum modo presente na atual criminalização dos lutadores sociais, sobretudo daqueles que lutam por terra e moradia?
Quais são as novas técnicas que marcam simbolicamente a marginalidade dos que hoje fogem da submissão a condições miseráveis?
E a pergunta que já fiz antes: estamos vivendo de passado?
Notas:
base e o progresso por fim”, de autoria do filósofo positivista francês Auguste Comte.
2. Extraído do livro Onda Negra, Medo Branco; o negro no imaginário das elites – século XIX, de Célia Maria Marinho de Azevedo. Editora Paz e Terra, 1987.
3. Segundo Stuart Schwartz, no livro Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). Companhia das Letras, 1988.
* Rodrigo Oliveira Fonseca - Este autor possui 2 postagens n'A Identidade Bentes.
Jornalista formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em história social da cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), professor-bolsista e doutorando em estudos da linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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