Escritores marxistas ocidentais de vários pontos de vista asseveram que a Nova Política Económica (NEP) prenunciou a economia socialista de mercado (ESM). Um escritor observou: "A ordem social que actualmente se considera válida na China apresenta-se como uma espécie de NEP gigantesca e expandida" (Losurdo 2000, 498). De forma semelhante, um panfleto recente dos comunistas britânicos comparou a China dos dias actuais, com sua economia socialista de mercado, ao NEP da Rússia Soviética na década de 1920. "Em defesa do NEP, Lenine elaborou muitos dos mesmos pontos que Deng Xiaoping e representantes do Partido Comunista Chinês elaboram hoje... Naturalmente, a China no último quarto do século XX não era a Rússia no primeiro quarto. Mas as suas crises apresentam sintomas semelhantes. E os seus remédios assemelham-se fortemente um com o outro" ( China's Line of March 2006, 32). [1]
Este meu documento partilha a visão de que a NEP é na verdade uma precursora da ESM. Chego à conclusão, no entanto, não de que a NEP fosse o êxito, o precursor abortado da ESM, mas ao contrário de que a NEP conta-nos antecipadamente as contradições e limites da ESM. [2]
NEP e ESM: essencialmente o mesmo
Ironicamente, podem-se encontrar eminentes economistas chineses a negarem a conexão entre a NEP e a ESM, ou pelo menos relutantes em afirmá-la. Um economista chinês representativo [da tendência] pró-mercado, o falecido Xue Muqiao, enfatizou a dissemelhança entre a NEP e a ESM. [3] Tal dissociação é pouco convincente. A NEP é semelhante a ESM em todos os aspectos chave. Na finalidade e no conteúdo de classe a NEP e a ESM são o mesmo: aumentar a riqueza de uma classe trabalhadora, como estado socialista, por um política que tornava necessário o crescimento de novas classes objectivamente hostis à construção socialista. Suas principais políticas são as mesmas. Ambas promovem mecanismos de mercado, propriedade privada, competição, integração na economia capitalista externa. Seus resultados seguiram a mesma sequência. Ambos, após o êxito inicial, entraram numa crise porque eram auto-contraditórias. Em teoria, eram as mesmas. Elas avançaram e cumpriram a restauração das forças produtivas deslocando-se para trás, para relações capitalistas de produção historicamente ultrapassadas, discordantes dos objectivos socialistas de um estado dos trabalhadores. Finalmente, as suas crises foram as mesmas, como veremos abaixo. [4]
Fundamentos da NEP
Recordemos o que foi a NEP. Em Março de 1921, após a rebelião do Kronstadt contra políticas bolcheviques, o 10º Congresso do Partido Comunista Russo reuniu-se e ouviu Lenine argumentar em favor de um novo rumo na política soviética. Lenine argumentou a favor do que denominou "capitalismo de estado" a ser realizado nas seguintes formas: (1) joint ventures com o estrangeiro e mesmo propriedade estrangeira de empresas ("concessões"); (2) cooperativas baseadas nos princípios de mercado; (3) a utilização de comerciantes capitalistas, bem como administradores económicos e especialistas técnicos treinados em métodos capitalistas de gestão e organização; e (4) o arrendamento (leasing) de empresas de propriedade estatal e de recursos naturais tanto a capitalistas estrangeiros como internos. As empresas estatais, as quais controlavam os "níveis de comando", eram auto-suficientes e operavam no princípio dos lucros e perdas, abastecendo-se elas próprias dos seus próprios activos circulantes (Sargis, 2004).
Por que acabou o NEP?
A maior parte dos partidários do socialismo, incluindo este autor, encara a NEP sob uma luz positiva, como um expediente de curto prazo que teve êxito ao ajudar a Rússia revolucionária a sair de uma crise económica. Lenine demonstrou-se correcto: depois de o livre comércio nos cereais ter sido restaurado, a NEP logo teve êxito. Mas no fim da década de 1920, contudo, a NEP terminou porque estava a aprofundar a crise, não por causa dos poderes arbitrários e excessivos de Staline, como é muitas vezes apregoado. [5] Múltiplas crise levaram a liderança soviética a terminar a NEP. [6]
A NEP trouxe mais cereais para as cidades (isto é, aumentou as forças produtivas) ao aumentar os incentivos para os camponeses, especialmente os camponeses ricos (kulaks), com base nos antigos incentivos embutidos nas velhas relações de produção. Mas as mesmas relações de produção pré-revolucionárias restauradas pelos bolcheviques concederam aos kulaks o poder de retirar cereais do mercado na esperança de [obterem] preços mais elevados. A NEP então restaurou rapidamente o vínculo camponês-trabalhador, mas ao custo do fortalecimento dos inimigos de classe internos — os kulaks e "NEPmen" [7] — e objectivamente deu-lhes, especialmente aos últimos, cada vez maior poder sobre o ritmo da construção socialista. Portanto, a curto prazo, a NEP apaziguou o campo mas a prazo mais longo fortaleceu inevitavelmente as classes opostas à construção socialista. Além disso, alienou a classe social para a qual o sistema é suposto funcionar, a classe trabalhadora.
O estado soviético lutou arduamente para enfrentar as contradições, mas elas não podiam ser eliminadas. Elas tenderam a agudizar-se ao longo do tempo. Aumentaram as desigualdade sobre a terra e os desequilíbrios na indústria. A possibilidade do crescimento rápido da indústria pesada socialistas recuava. Formas de consciência social que levavam à confusão e retrocesso ideológico atingiram o interior do Partido e ameaçavam a sua unidade. [8] A corrupção floresceu. [9] Em 1921-28, o imperialismo utilizou a NEP, embora de forma limitada, para intervir nos assuntos soviéticos. [10] O fortalecimento económico da pequena burguesia levou o crescimento do nacionalismo pequeno-burguês a assumir duas formas: chauvinismo Grão Russo e separatismo nacionalista nas antigas nações subjugadas (Lenin e Stalin, 1979; Stalin 1953, 243–44). Quanto mais o fim da NEP fosse adiado, maior seria o custo de voltar ao planeamento e à propriedade pública. Por volta de 1928 a maior parte dos líderes soviéticos concluiu que ou os kulaks estrangulariam a revolução ou o estado soviético teria de descobrir um meio de cortar o Nó Górdio. A solução foi que: a) O socialismo podia ser construído num país, através da industrialização rápida. b) A industrialização rápida podia ser financiada por rendimentos acrescidos da agricultura através de cooperativas agrícolas e da mecanização. c) Um confronto com os kulaks seria inevitável. d) O crescimento da indústria e da agricultura podia ser coordernado pelo planeamento central (Keeran e Kenny, 2004, 18).
O poder preditivo da NEP
Tal como a NEP, a ESM avançou e efectuou a restauração das forças produtivas através do retrocesso para relações capitalistas de produção historicamente ultrapassadas, discordantes de outros objectivos socialistas a médio e longo do povo da China. Se na verdade a NEP é um padrão para a ESM, que fenómenos seriam de esperar na China? Nós esperaríamos ver — e estamos a ver — o crescimento de forças de classe hostis dentro do país; corrupção do Partido; regressão ideológica; inquietação social; desemprego; desigualdade crescente entre ricos e pobres; desigualdade entre regiões; privações e inquietações rurais; [11] graves condições para os imigrantes das zonas rurais que procuram trabalho nas cidades; abusos nos locais de trabalho, especialmente em firmas controlados pelas corporações transnacionais (CTNs); alienação dos trabalhadores industriais e camponeses pobres em relação ao Partido; declínio dos serviços de saúde e educação (Hart-Landsberg and Burkett 2004, 58–75).
Certas características especiais da ESM tornam a China Popular ainda mais vulnerável ao perigo que chegou a ser na Rússia. A inovação doutrinária da etapa primária de socialismo permitiu, até muito recentemente, uma atitude displicente quanto aos sinais de advertência. A China está muito mais integrada plenamente na economia capitalista mundial, um facto imposto por instituições tais como a Organização Mundial do Comércio (OMC). Da integração resulta a facilidade de transmissão de choques económicos externos. A China permanece dependente de uma ordem política e militar dirigida pelo imperialismo. A pressão imperialista para desregulamentar o sistema financeiro da China e, mais genericamente, para enfraquecer o controle do estado sobre o conjunto da economia, para "abrir-se", persiste. Se a China procurar corrigir abusos no trabalho em firmas de propriedade das CTNs, estas ameaçam reduzir ou acabar com o investimento no país.
Questões resultantes para a ESM da China
Se esta análise da NEP for correcta, certas questões seguem-se logicamente.
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Deverá a crise da ESM piorar? A China conseguiu ganhos dramáticos na produção com a extensão das relações capitalistas de produção, a mesma contradição que atormentou a NEP. Durante quanto tempo mais a ESM será sustentável? Na União Soviética em 1928-29, para encerrar a NEP foi necessária uma luta demasiado sangrenta no campo, "uma terceira revolução" na frase de Bukharine. Não será razoável pensar que reverter o rumo na China também exigirá um preço demasiado alto se ela for adiada por "uma centena de anos"? [12] A nova doutrina da "etapa primária do socialismo" a estender-se quase infindavelmente no futuro parece subestimar gravemente a velocidade do aumento de classes objectivamente hostis ao socialismo na China Popular.
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Quais são as prováveis consequências da ESM na esfera da ideologia? Nos meados da década de 1920 os líderes soviéticos notaram a ascensão do nacionalismo pequeno-burguês. Poderá alguém avaliar o impacto ideológico regressivo da descolectivização e do retorno à propriedade privada sobre milhões de camponeses chineses?
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Haverá um caminho de desenvolvimento para a China Popular que ofereça uma taxa de desenvolvimento das forças produtivas igual ou ainda mais rápida? Na URSS, no Primeiro Plano Quinquenal, quando a URSS transcendeu a NEP, foram atingidas taxas anuais de crescimento industrial da ordem dos 13 por cento. [13] Uma vez que a construção socialista significa tanto criar relações socialistas de produção como aumentar as forças produtivas, pode mesmo fazer mais sentido aceitar um crescimento mais lento da produção se isto for necessário para dedicar mais atenção a reparar a rede de segurança social e a restaurar o bem estar de trabalhadores e camponeses.
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Será totalmente inédito que fenómenos de crises inesperada surjam na ESM, fora do controle das autoridades de Pequim? A NEP foi cheia de surpresas. As relações capitalistas de produções na China são extensas. A integração do país no sistema capitalista está avançada. Muitos — incluindo a Wall Street (Kahn 2005; Barboza 2006b) — temem a emergência de um dos maiores males do capitalismo, uma crise cíclica de super-produção, ou na linguagem do negócios, um crash, após um longo boom. Os planeadores centrais em Pequim cederam muito poder à espontaneidade do mercado. [14] Será que ficará em causa a capacidade estabilizadora do estado diante da economia frenética e do impacto brutal de choques externos?
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Haverá qualquer realismo em supor que o imperialismo concordará numa "ascensão pacífica da China"? [15] A NEP restringiu as "concessões estrangeiras" e confinou o seu comércio exterior em grande medida a trocas de cereais-por-maquinaria pesada. Mas o registo histórico é amargo. Será que a Grã-Bretanha imperialista anuiu à "ascensão pacífica" da Alemanha em 1870-1914? Será que a América imperialista anuiu à "ascensão pacífica" da URSS em 1945-91? A história sugere que a China Popular terá de lutar pelo seu sistema socialista, sua independência nacional e pela paz. O imperialismo é o inimigo de todos os três.
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Se a ESM significa nova busca da China de integração num mundo de política económica dominado pelos EUA, como pode a China socialista cumprir suas responsabilidades internacionalistas? Deve a China procurar desenvolver-se através da atracção de investimento e competindo no comércio exterior apenas na base dos salários baixos? [16] Os interesses da classe trabalhadora da China não são os únicos em causa. Todos os amigos do socialismo chinês ficaram satisfeitos com os passos recentes para melhorar direitos trabalhistas (Barboza 2006a). Quando a URSS alcançou milagres de produção nos primeiros dois Planos Quinquenais, revolucionários de todo o mundo ganharam ânimo. O dano ideológico para o prestígio do socialismo provocado pela imagem da China — merecida ou não — como "fábrica do mundo com péssimas condições de trabalho" é grande.
Conclusão
É de saudar que a liderança principiada em 2002, perturbada por estes indicadores negativos, esteja a combater mais duramente as consequências danosas da ESM. Este documento, assim espero, acrescenta argumentos, baseados na teoria e na história, aos argumentos daqueles líderes chineses que pretendem ir mais adiante nesta rectificação. O movimento revolucionário mundial sofreu imensas perdas com a destruição do socialismo na Europa e na URSS quase no fim do século XX. O movimento ainda está a lutar para recuperar daquele revés. Tremo ao pensar no desespero que dominará toda a humanidade progressista no século XXI se a subestimação dos perigos inerentes à "economia socialista de mercado" causar danos irreparáveis às realizações revolucionárias da China Popular.
9- Sobre a corrupção da NEP, ver Ball 1987, 63, 106, 114, 116, 171.
16- "Se bem que os custos de remuneração horária total de trabalhadores manufactureiros tenham aumentado mais rapidamente na China do que nos Estados Unidos entre 2002 e 2004, a remuneração horária por empregado na China continuava a ser 3 por cento do nível dos Estados Unidos" (Lett and Banister 2006).
LISTA DE REFERÊNCIAS
———. 2006b. Rare Look at China's Burdened Banks: Loan Risk Adviser Warns of Cover-Up. New York Times, 15 November 2006.
Boffa, Giuseppe. 1982. The Stalin Phenomenon. Ithaca: Cornell Univ. Press.
Zheng Bijian. 2005. China's “Peaceful Rise” to Great Power Status. Foreign Affairs 84, no. 5 (September–October): 18–24.
[*] Autor de Socialism Betrayed: Behind the Collapse of the Soviet Union
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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