, por Sebastião L. Ferreira Vargas
Fragmento do artigo: Mística de Resistência: cultura política no Exército Zapatista de Libertação Nacional e no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/2002/mov/ferreira.pdf
A partir da fala de um militante do MST, que participou da Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça em 1997 podemos entender alguns dos vários significados da ‘mística’ do movimento. Lindomar de Jesus Cunha, o Mazinho, foi testemunha e sobrevivente do Massacre de Eldorado dos Carajás ocorrido no dia 17 de abril de 1995 em Curianópolis no estado do Pará deixando19 mortos, 69 feridos e 7 desaparecidos. Mazinho nos conta como foi sua infância cercada de pobreza, exploração, violência e sofrimento, seu envolvimento com o mundo da marginalidade e o encontro que mudaria o ruma de sua vida com o MST onde, segundo ele, “as coisas eram totalmente diferentes! Me tratavam com carinho, com amor! Há uma grande diferença entre viver recuado da sociedade e se achar dentro dela! Isto sim é bom! É um aroma muito gostoso”. No trecho reproduzido a seguir, Mazinho narra os momentos do Massacre e a morte de seu companheiro Oziel:
“Mas o que preferia mesmo era fazer mística – não vou mentir... Gosto muito do lado do teatro! Gostava de fazer mística junto com um companheiro que perdi o ano passado – o Osiel Alves Pereira, o Pereirinha, aquele menino de rua com quem briguei de facão! ... Era meu conhecido de infância lê em Parauapebas...
Reconheci ele quando cheguei no acampamento em Marabá, em 94. Tinha entrado um pouco antes do que eu e estava com uma furada nas costas! Um cara tinha furado o Osiel na rua e assim ele procurou o Movimento... Se integrou mesmo! Deu tudo de si!
Meu apelido dentro do Movimento é Zumbi, e por causa disso gostava muito de apresentar aquele livro de Zumbi dos Palmares junto com o Osiel!... Num curso que a gente fez juntos, criamos um grito de ordem e resgatamos o livro em mística... Eu sempre gostava de fazer o papel de Zumbi, e ele de Ganga Zumba. A gente fazia a apresentação em assembléias, atos-show... Hoje o grupo de teatro está meio desfalcado, porque estou viajando muito, os outros companheirostambém. O Movimento chamou mais a gente pra luta, está necessitando mais da luta...
O primeiro dia que apresentamos a peça foi muito emocionante! Foi noacampamento, no mesmo dia do assentamento, quando a gente chegou do curso. Foi “Zumbi dos Palmares” que apresentamos... Quando terminamos a peça e cantemos o hino do Movimento Sem Terra, fomos bastante aplaudidos e todo mundo gritava:
- OSIEL E MAZINHO!... OSIEL E MAZINHO!...
A gente ficou bastante emocionado!... As meninas queriam atacar!... Deu um pouco de vergonha... Foi engraçado!
Era sempre muito bom... Osiel acreditava em mim e eu acreditava nele. Na parte que ele pegava, cumpria; na parte que eu pegava, fazia o mesmo. Assim como os meus companheiros de teatro. Era muito bom a gente trabalhar junto, e sofremos uma perda muito grande quando ele foi embora... Deixou a gente... Sentimos bastante sua falta no grupo de teatro! Ele foi assassinado no massacre de eldorado dos Carajás...
Osiel era um moreno, cabelos longos, usava brinco, cordão, pulseira... Osiel Alves Pereira...
A gente tinha ido pro acampamento chamado Complexo Macaxeira, em Eldorado dos Carajás. Ele foi trabalhar lá e eu fui designado para outras tarefas o Movimento... Uns seis meses depois que a gente tinha voltado do curso, em abril, já se programava uma caminhada até Belém, para massificar a capital. Quando chegamos em Curinópolis, no Pará, fizemos um acampamento. Depois de uns três dias, os companheiros estavam com fome e, como a gente não agüenta a fome mesmo, houve um SAQUE de um caminhão... A gente pegou alimentação e comeu... Quando deu meia-noite, as luzes se apagaram. Naquela noite os policiais iam atacar a gente! Mas, como era no meio da cidade, eles largaram, não quiseram atacar... Desconfiamos, mas fizemos de conta que nada tinha acontecido...
Continuamos andando... Quando chegou dia 16, perto de eldorado de Carajás, fizemos outro acampamento, onde aconteceram outros obstáculos... Pessoas ameaçavam. Mas ameaças bobas, que não dava pra gente se preocupar... Foi onde vi o Osiel, que trabalhava comigo... Só que nesse dia ele estava doente. Estava com uma dor de cabeça e chegou a desmaiar! Aí a gente deu remédio e ele ficou bom. Estava normal no outro dia. Continuamos a caminhar... Quando cheguei lá no outro local, em Eldorado, ele falou o seguinte para mim:
-Ô companheiro! Você volta pro acampamento e fica lá com os companheiros.
Eu disse: -Então, tudo bem! Eu vou pra lá. Aqui tem muita gente...
Nesse lugar, no meio de uma estrada em Eldorado, tinha 2.500 pessoas, e no acampamento, 3 mil. Levei Cláudia, a minha esposa. Chegando no acampamento, tive que mandar ela de novo de volta, e ainda fiquei mais uma semana até que toda a alimentação acabou...
Assim, no dia 17 de abril, às 7 horas da manhã, tive que sair do acampamento para buscar alimentação na caminhada... Era um pouco longe e cheguei às... 3 e meia da tarde. Uma companheira da gente começou a brincar e ficamos lá brincando, conversando... Ela, que é meio cigana, chegou e disse assim para mim:
- Mazinho, é o seguinte: sabia que a polícia vai matar a gente hoje?
Eu disse:
- Não . Não acredito nisso, não...
Tem uns companheiros lá que trabalham junto com a gente, acostumados a brincar... Aí, como a gente brinca muito, começamos a dizer:
- Ah, já que a gente vai morrer, vamos todo mundo dar uma forradinha no estômago!...
Começamos a brincar, e meu compadre Márcio disse também: - Compadre, vamos dar uma forradinha!...
Meia hora depois da brincadeira, a gente olhou pra um lado, olhou pra outro e estava fechado de polícia...
Aí eu disse:
- Meu compadre, será que é verdade mesmo?!
Ele respondeu:
- Meu compadre, é o seguinte; será que esse governo é covarde?!
Assumiu um compromisso com a gente e não vai cumprir?!
Porque ele tinha se comprometido com a gente:
- Olha, se vocês desocuparem a estrada, amanhã mesmo – que era dia 17 – trago dez ônibus, oito caminhões e alimentação pra vocês irem para Belém.
Nós, como movimento popular, temos nossa posição também, dissemos o seguinte:
-Se você garantir isso até meio-dia, a gente mantém a pista desocupada.
Agora, se der esse horário e você não chegar com isso aí, a gente vai ocupar a estrada e não vai deixar nada passar!...
E foi o que fizemos. Meio-dia, não apareceram com os ônibus, nós ocupamos a estrada de novo!... Então, quando a gente olhou e viu tudo cheio de polícia, nós tentamos tirar as pessoas da estrada. A gente tentou... Puxamos as pessoas... Tiramos as pessoas da estrada. A gente tentou... Puxamos as pessoas... Tiramos as pessoas da estrada. Mas... como a operação foi muito rápida não deu tempo de tirar TODAS...
Naquela fita, que mostra esse dia, tem pouca gente na estrada... Isso porque já tinha puxado um bocado... A gente tentava tirar o pessoal dali! Mas a polícia já chegou atirando nas pessoas!... Não é como mostra na fita, que dizem que a gente atacou!... Mentira! Eles atacaram a gente!... Eles mataram a gente!... Falam:
- Sem-terra mata próprio sem-terra.
Mentira!... Porque a gente não tinha arma. A gente não matou ninguém!... Com meia hora de tiroteio, peguei um tiro na perna direita. Foi quando saí um pouco de ação... Quando caí no chão e levantei, tive que carregar nas costas um colega meu, chamado Garoto... A polícia tinha atirado e arrancado um pedaço da perna dele... Carreguei Garoto e deixei o meu companheiro, o Osiel Alves Pereira, no carro de som chamando as pessoas para saírem da estrada... Quando a polícia viu, tentou ir pro rumo dele... Osiel correu cheia de crianças e mulheres deitadas no chão, com medo das balas...
A polícia chegou lá no local, pegou meu companheiro pelo cabelo, começou a mandar gritar o grito de guerra... Ele começou a gritar:
- MST, MST, MST!
E eles batendo:
- Grita aí teu grito de ordem, seu filho da puta!
- MST, MST, MST!
- Grita, filho da puta!
Pá. Batiam nele, batia, batia...
- Grita, filho da puta!
- MST...
Eu sinto uma HONRA muito grande pelo meu companheiro Osiel. Quero deixar claro: não sinto Osiel como morto... Ele VIVE... Vive na alma de todo mundo que é brasileiro... E... dá pra gente sentir a perda de um companheiro de luta, que sempre estava tentando transformar essa sociedade. É muito ruim quando a gente sabe que um companheiro se foi, deixou a gente....” Santos et al., 1998 : 226)
Segundo testemunhas, Oziel Pereira, 17 anos, um dos líderes do MST, foi amarrado em uma caminhonete e torturado por mais de 4 horas. A caminho do hospital, foi assassinado com um tiro no ouvido e golpes de baioneta. Neste candente trecho podemos compreender alguns dos elementos da mística: sua função teatral e lúdica, num primeiro plano e sua posterior presença na emoção e na energia daqueles que lutam e resistem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário