, por João Alfredo Telles Melo
Para Felix Sánches, João Luis Duboc Pinaud e João Pedro Stedile
Escrevo este relato ainda impactado pelos primeiros resultados que dão a vitória ao ex-bispo Fernando Lugo, da Aliança Patriótica pela Mudança (Câmbio, em espanhol, daí a sigla APC), que atenua o cansaço de um dia que começou às 4 da manhã deste domingo, 20 de abril, para trabalhar como observador internacional nas eleições gerais paraguaias, como um dos representantes indicados pela Via Campesina/MST.
Muitos sentimentos me povoaram nesta rápida passagem de um pouco mais de dois dias em Assunción. Ceticismo, um pouco de interesse e, principalmente, de curiosidade me acompanharam desde que saí à tardinha, da sexta, dia 18, de Fortaleza rumo ao Paraguay. Afinal, meu espírito crítico extremamente aguçado me fazia desconfiar de uma aliança de partidos e movimentos de esquerda com um partido autodenominado liberal (que indicou o vice da chapa), ainda que a candidatura de Lugo, um bispo comprometido com a causa dos pobres, militante da Teologia da Libertação, me inspirasse uma simpatia de quem já havia acompanhado com fervor, há quase trinta anos, a Revolução Sandinista da pequenina Nicarágua. Experiência, que, com a participação decisiva da igreja popular, embalou (e depois veio a frustrar) os sonhos de juventude de minha geração.
Dentro do avião, no trecho São Paulo/Assunción, ao ler um importante periódico paraguaio, recebo o primeiro choque de realidade: uma nota da associação representativa dos proprietários rurais desancando o programa agrário do movimento "Tekojoja", que dá suporte à candidatura da APC. Ali, os ruralistas, muitos deles certamente de origem brasileira, rechaçavam, virulentamente, as propostas de agroecologia, reforma agrária e agricultura familiar que orientam o programa de desenvolvimento rural de Lugo. A luta de classes irrompia através do lado mais "moderno", do ponto de vista do capital agropecuário, o do agronegócio, que segue, no entanto, extremamente arcaico em sua face socioambiental. O programa de câmbio, no campo, se mostrava para valer e isso já impactava meu olhar e meus sentimentos.
No entanto, foi o contato - em que pese o pouco tempo de permanência - com o povo paraguaio que me foi cativando e me desvendando uma realidade até então desconhecida para mim. Chegar ao aeroporto de madrugada, sem ninguém a me esperar, e ter a ajuda, de forma interessada e gentil, de um taxista para me levar a uma pousada, começou a me revelar uma característica tão próxima a meus conterrâneos cearenses, a hospitalidade. Mas, não só. Suas raízes indígenas, a língua guarany, da qual não abrem mão, o orgulho de sua história, o amor a seu país, a vontade de mudança política estiveram sempre presentes nas falas que colhi do povo mais simples de Assunção.
Um capítulo à parte, para mim, foi o contato com a língua guarany, que, à maneira dos ideogramas orientais, permite traduções não literais e têm uma riqueza muita larga de significados. Observe-se "Tekojoja", nome do movimento da candidatura de Lugo. Dos paraguaios, ouvi três diferentes traduções: "todos juntos", "estamos (ou vivendo) juntos" e "somos todos iguais", que me pareceu a mais apropriada (embora sem contradição com as demais), pois "joja" significa "paralelo", "no mesmo plano", a dizer que ninguém é maior do que o outro (como que recuperando o "ethos" da república comunista-cristã dos guaranys, de Sepé-Tiaraju). Nessa hora, não dá para esconder uma ponta de inveja por termos perdido quase que completamente, pelo decreto de Pombal, nossa língua geral brasileira, o "nheengatú" (que sobrevive em pouquíssimos recantos do Brasil), de raízes tupi, pela imposição do português como idioma único e oficial.
Ouvir deles que seu herói nacional é o "Mariscal (Marechal) López" - o Solano López, pintado como um ditador implacável em meus livros de história do primário - não deixa de nos trazer um certo sentimento de vergonha, pelo que o Brasil, a Argentina e o Uruguay, em sua Tríplice Aliança, fizeram covardemente com esse povo, ao matar centenas de milhares de homens, destruir a nascente infraestrutura do país, golpeando, significativa e fortemente, o desenvolvimento desse país.
Nessa hora, é que nosso sentimento de solidariedade emerge com muita força e se fortalece ainda mais pela companhia, multidiversa e multipartidária, dos observadores eleitorais convidados pela APC. Gente de todo o mundo, de partidos de esquerda e centroesquerda, que viemos a Assunção para presenciar o início do que esperamos venha a ser uma verdadeira Revolução Democrática, através da derrota - e agora os resultados se confirmam – de 61 anos de corrupção, violência e exploração do povo guarany pelas elites políticas e econômicas, representadas, principalmente, no Partido Colorado.
Agora, os noticiários televisivos confirmam a vitória de Lugo (com o reconhecimento da derrota pelos dois principais adversários, a oficialista Blanca Ovelar e sua dissidência, de corte militarista, o General Oviedo) e o povo já toma as ruas, marchando, com suas bandeiras tricolores e buzinaços, em direção à Praça do Panteón. Estranha – e explosiva – metamorfose! Durante todo o dia, o que vimos foi a presença ofensivamente ostensiva da estrutura do Partido Colorado: carros, camionetas, ônibus, a carregar os eleitores, sem nenhum pudor de portar, inclusive, às portas das seções eleitorais, cartazes, adesivos, bandeiras, demonstrando a prepotência de mais de 60 anos de dominação e corrupção. As aparências – que enganavam o observador mais leigo – escondiam a decisão - já tomada, mesmo que de forma discreta, porém resoluta, pela ampla maioria do povo – de derrotar o regime que lhe infelicitava há décadas.
Esse sentimento latente já se manifestara, ali e acolá, quando os fiscais dos partidos de oposição nos procuravam, aos observadores internacionais, para denunciar as mais variadas formas de corrupção eleitoral (tão conhecidas de nós, brasileiros), como as ameaças aos servidores e a compra de votos junto aos eleitores pobres. Na periferia, observamos o caso de mais de quatrocentas famílias que haviam sido pressionadas a votar nos colorados, sob pena de serem expulsas de uma ocupação recente. A preocupação maior, no entanto, era com a fraude, no momento da feitura das atas pelas mesas eleitorais, que funcionariam também como mesas apuradoras. Aliás, só o receio da fraude é quem pode explicar o fato de que, nas pesquisas de boca-de-urna, eleitores de Lugo desacreditarem de sua vitória. No entanto, a ampla maioria de quase dois votos a um, nas urnas da capital, para a candidatura do "Câmbio" ("palavra mágica", no dizer de Lugo, em sua primeira coletiva de imprensa após a eleição), e sua ampla e imediata divulgação, é que veio a impedir qualquer tentativa de corromper o resultado eleitoral.
O que vai se passar, em nosso vizinho, a partir de agosto, quando o candidato dessa ampla aliança de partidos e movimentos tomar posse, é a indagação que fazemos os socialistas de todo o mundo que para lá acorremos e nos tornamos testemunhas dessa virada histórica. Como vão se dar as negociações com o governo brasileiro, em torno do preço – atualmente injusto e defasado - da energia de Itaipu, diante do que o programa da APC designa de "soberania energética"? Será possível a construção de um novo modelo de desenvolvimento rural – social e ambientalmente justo e responsável - com a realização de uma reforma agrária ecológica, que golpeie o latifúndio, os transgênicos, os agroquímicos e a monocultura e devolva a terra para os seus legítimos donos? A governabilidade de Lugo vai se sustentar unicamente em sua contraditória frente partidária ou se apoiará na organização e mobilização dos movimentos sociais? O que seria essa "terceira via" entre Lula e Chávez a que o bispo, agora presidente, se referiu quando questionado sobre seu modelo de governo? O tempo – e a luta social – é quem nos dirão. Agora, o que fica em minha memória é a resposta do taxista que me levou ao aeroporto, quando lhe perguntei "Que tal?". Ele me disse tão somente: "Especial!".
João Alfredo Telles Melo, é advogado, professor e ex-deputado federal pelo PSOL/CE.
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