O jornal Zero Hora pode ter Álvaro Uribe como o seu herói, como o foram os cinco ditadores do golpe que o jornal chamava reverentemente, como de resto a mídia hegemônica, de “revolução de 1964”. Mas não pode negar uma verdade factual.
Ayrton Centeno
Um farol generoso banha com sua luz uma região sombria da diplomacia internacional. É Zero Hora dominical que dirige seu facho desde a avenida Ipiranga até os rincões recônditos do Itamaraty. Em sua matéria de capa (América desunida, 09/03), o jornal dos Sirostky ensina em que consiste o conflito entre Colômbia e Equador. Nas suas próprias e precisas palavras: “Quando sua moradia é assaltada várias vezes por um criminoso e este foge para a casa de um vizinho, um cidadão tem direito de invadir a residência ao lado para buscar o delinqüente que ali se escondeu?”
Para ZH este é resumo da ópera que colocou em cena Colômbia e Equador nas últimas semanas. Desatento, pensei até que fosse um “Para o seu filho ler” com três páginas [seção criada pelo jornal gaúcho para explicar temas polêmicos a crianças]. Não era. Mas era o lide! Imagino o ministro Celso Amorim, as mãos trêmulas de emoção e orgulho pátrio, compulsando esta síntese de diamante, poderosa e exata.
O problema – e sempre existe um problema para manter a vida imperfeita como ela é – é que a questão não é esta. Ou, de outro modo, já foi assim mas somente na proto-história do direito internacional público. Não é mais. Ainda bem. A inviolabilidade das fronteiras é uma regra de ouro do processo civilizatório e da constituição dos Estados nacionais. O criminoso é quem as viola, seja por qual motivo fôr. No caso, o criminoso tem nome e sobrenome: Álvaro Uribe Vélez. ZH pode tê-lo como o seu herói, como o foram os cinco ditadores do golpe que o jornal chamava reverentemente, como de resto a mídia hegemônica, de “revolução de 1964”. Mas não pode negar uma verdade factual.
O fato ocorrido constitui uma violação da soberania e da integridade territorial do Equador e dos princípios do direito internacional, afirma a declaração da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 3 de março sobre o tema, acentuando que tal iniciativa provocou “uma grave crise”. A resolução reafirma o princípio de que o território de um Estado “é inviolável e não pode ser objeto de ocupação militar nem de outras medidas de força tomadas por outro Estado, direta ou indiretamente, qualquer que seja o motivo, ainda que de modo temporário”.
Qualquer outra interpretação não está em discussão em nenhum outro foro exceto em ZH. Por sinal, logo depois, no encontro do chamado Grupo do Rio, em Santo Domingo, inclusive o presidente do México, Felipe Calderón, fiel aliado de George W. Bush a exemplo de Uribe, evocou o princípio da inviolabilidade territorial. No imbroglio, Uribe foi o “delinqüente” - aliás, coincidentemente, o mesmo termo escolhido pelo coronel Mendes [da Brigada Militar] na mesma ZH para definir os militantes sociais.
O diário da RBS, na verdade, usa o mote da agressão colombiana para aplacar sua antiga obsessão de fustigar Hugo Chávez. Em tom de denúncia, explora a suposta vinculação do ogro venezuelano – é assim que o baronato midiático o vê - com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Não que este assunto não mereça atenção. Mas é curioso, jornalisticamente, o desinteresse pelo gesto estranho de Uribe, totalmente inadequado às circunstâncias sobretudo porque estava em curso uma operação humanitária de resgate de seus compatriotas em que se empenhavam países vizinhos e a França e desejada pela comunidade internacional. A conseqüência imediata foi a suspensão do processo que beneficiaria a todos os protagonistas: os reféns, suas famílias, Chávez, as FARC, Sarkozy. Beneficiaria, especialmente, a busca de uma saída pacífica para a Colômbia. Mas talvez não beneficiasse Uribe.
Em uma América do Sul que se renova politicamente e bane oligarquias enquistadas no poder há décadas, quem ameaça a estabilidade, como nota o jornalista Alon Feuerwerker é Uribe, cuja solução para se perpetuar no poder passa pelo prosseguimento da guerra civil. Ele é o perigo.
Aprisionada em um embate eterno e estéril entre dois partidos tradicionais, um liberal e outro conservador, a Colômbia é um poucos países do continente em que os ventos de mudança ainda não sopraram. Há uma explicação para isso, como recorda uma reportagem do Le Monde Diplomatique.
Em 1984, o governo colombiano de Belisario Betancourt e as Farc abriram um processo de conversações. Que evoluiu para um acordo, em cujo leito os guerrilheiros – como aconteceu em tantos outros países – caminhariam para a legalidade e a disputa do poder pela via eleitoral. Sob estes auspícios nasceu, no ano seguinte, a União Patriótica (UP), partido destinado a defender os pleitos das FARC. Porém, no mesmo ano, deflagraram-se as perseguições e os massacres pelo próprio Estado ou com a sua anuência. Em 1988, 40 militantes foram executados em praça pública, na cidade de Segóvia. Também foram assassinados dois candidatos presidenciais, Jaime Pardo Leal e Bernardo Jaramillo Ossa, o primeiro em 1987 e o segundo em 1990.
Três anos mais tarde, a UP perderia, igualmente por assassinato, seu último senador, Manuel Cepeda Vargas. Antes, oito parlamentares da UP já haviam sido executados. Houve mais de 30 atentados a bomba contra os comitês da UP. Calcula-se que três mil pessoas morreram na transição frustrada das FARC para a legalidade. E a chacina continua. Sob o governo Uribe, mais de 150 remanescentes da UP foram mortos ou “desapareceram”. Como se vê, independentemente do que tenham feito ou deixado de fazer as FARC, a realidade é complexa. E, por certo, não cabe dentro de um lide policialesco.
Ayrton Centeno é jornalista
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