“No hago diferencia entre la realidad y lo fantástico. Para mí, lo fantástico procede siempre de lo cotidiano.”
Julio Cortazar
“No hago diferencia entre la realidad y lo fantástico. Para mí, lo fantástico procede siempre de lo cotidiano.”
Julio Cortazar
Autor e obra: um diálogo profuso
Julio Cortázar, escritor portenho, nacionalizado francês, foi um dos grandes nomes da literatura contemporânea. Unia o atrevimento literário e a aventura estética com o compromisso político em favor dos povos do terceiro mundo, num desejo de subverter não só a linguagem, mas sim de nos fazer descobrir universos que o homem é incapaz de ver.
O seu exílio na França, após a chegada de Perón, foi responsável pela produção de duas obras importantes: Los reyes (1949) e Bestiario (1951). Nelas, Cortázar encontrou dois caminhos seguros: o relato como meio de expressão e a linguagem ou “jogo da forma”. Em seguida, juntamente com Borges, será o maestro do conto, do relato e da narração paradoxal. Em Las Armas secretas (1959) está um de seus contos mais conhecidos, Las Babas del diablo, um relato no qual o escritor e o fotógrafo se enfrentam com a natureza mentirosa de seu ofício: a fiel reprodução é impossível para o homem. Em 1964 publica Final del juego e Todos los fuegos el fuego em 1966, considerada por alguns sua obra de maior êxito.
Segundo Cortázar, o homem, instintivamente, não se contenta com o lado aparente das coisas e busca, então, o outro lado. “O outro lado” sob o prisma cortazariano é um mundo de criatividade não estruturada, como a poesia de Lorca ou a música de Johnny em El perseguidor, outro fabuloso trabalho do autor. Pode-se dizer grosso modo que Cortázar possuía o segredo literário de conceber uma segunda realidade. Segunda realidade na qual uma galeria em Paris conduz a uma galeria comercial em Buenos Aires com naturalidade; na qual as casas são tomadas pacientemente, cômodo após cômodo, por forças desconhecidas que aterrorizam seus habitantes. Se se deseja “conectar” coisas, por exemplo, tudo o que se tem que fazer, como em Rayuela, uma das grandes manifestações da modernidade hispano-americana, é unir duas sacadas de um manicômio por meio de uma grande tábua.
Cortázar escreveu um maravilhoso conto sobre o maior engarrafamento do mundo na auto-estrada Paris-Marselha. O escreveu na mesma forma em que Colombo descreve o mar Caribe. Uns dias antes de sua morte, a auto-estrada que une a França à Itália através dos Alpes sofreu um bloqueio total, obra, sem dúvida, dos cronópios em homenagem ao escritor.
Em Historias de Cronopios y de Famas, Cortázar divide os leitores em dois grupos: os famas são os que se ajustam a regras fixas e vivem de uma forma convencional, ao passo que os cronopios vivem de forma espontânea e livre. Rayuela (1963), o mais grandioso romance deste escritor, foi escrita para estes. Neste romance quebra-cabeças se coloca em dúvida a literatura e sua relação com a realidade. O romance se divide em três partes: o lado de “lá”, o lado de “cá” e, por fim, os “outros lados”, e representa a desintegração de tudo o que constitui cultura e moralidade, demonstrando com seu texto fragmentado a convencionalidade do pensamento, da ação e inusitadamente da atividade literária. Rayuela é a história de um homem, chamado Oliveira, que deixa a herança e deixa a América por outra cidade, Paris, que para ele representa o ócio, a novidade, as férias, a cultura, já descobrindo na Europa que a história é uma viagem vã, o trânsito por um mundo que não conduz a nenhuma parte. Para Cortázar, as coisas sempre estão fora de seu lugar. Como em “La isla a mediodía”, desejamos o avião quando estamos em terra e a terra firme quando estamos voando.
No ritmo frenético de quase um livro por ano, Cortázar publicou em 1967 La vuelta al día en ochenta mundos, um livro insólito sobre a vida cotidiana de um escritor. Modelo para armar (1968), Libro de Manuel (1973) e assim sucessivamente até Nicaragua tan violentamente dulce, título que resume a posição do autor em relação a este país e que veio a público uns dias antes de sua morte. Cortázar é considerado por José Donoso como o autor que inicia o “boom” da literatura hispano-americana, ao qual se uniriam Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Carpentier e os demais contemporâneos.
Aproveitando a oportunidade que se nos afigura, seria interessante e por demais proveitoso abrir espaço para a discussão deste momento que se denominou o “boom” da narrativa hispano-americana, ocasião em que desponta uma notável escritura que passaria a tomar corpo até atingir seu ápice com a consecução dos prêmios literários e o conseqüente reconhecimento de sua importância pelo público mundial. Este parêntese se faz necessário visto que nosso escritor em observação, Julio Cortázar, se configura numa das mais importantes figuras deste período, pelo qual perpassa a produção literária do artista portenho da palavra.
Aspectos históricos da narrativa contemporânea hispano-americana
Embora Cortázar tenha feito parte deste momento histórico da literatura hispano-americana contemporânea, ou seja, o que permeia o alvorecer e a consagração do boom da narrativa, não foi ele o primeiro a se lançar nesta imbricada aventura literária. Este feito ficou a cargo de outro argentino, não menos notável, que certamente foi o pioneiro, o responsável pela revolução do conto na América hispânica, realizando este portentoso ideal com a exploração de mundos históricos ou mesmo míticos. Seu nome é Jorge Luis Borges, o famoso escritor que acabou sendo imortalizado ao ser fabulosamente transformado em personagem por Umberto Eco em O Nome da rosa.
Para explicar o chamado “boom” hispano-americano podemos arrolar várias causas que trabalharam em favor de sua concretização, causas estas que se associam na criação de uma novelística autenticamente nova. Ao lado da maturidade alcançada pelo conto, devemos ter em conta vários acontecimentos: a rebelião iniciada pelos vanguardistas dos anos 20 contra um conceito de realismo e de realidade por demais estreitos, ínfimos; a influência de Faulkner e o fluxo de consciência joyciana; a fantasia surrealista; o tratamento da memória e do tempo em Proust; o “nouveau-roman” francês; o crescimento das cidades, da Buenos Aires de Borges, inflada de tensões, de espanhóis, polacos, italianos e russos, que até ali haviam ido em busca da utopia perdida, e na qual também havia tertúlias, polêmicas literárias e revistas como Proa, Claridad, Prisma e Martín Fierro. Em outro plano, não menos primordiais, estão as tensões políticas, o impacto da revolução cubana com o discurso de Fidel Castro dirigido aos intelectuais, a ressonância dos meios de comunicação e o incremento dos círculos de leitores.
Nesta América hispânica, as literaturas nacionais não funcionam no mesmo sentido que as literaturas nacionais européias, articuladas em sistemas coerentes e estáveis. A maior parte da literatura atual destes países atravessa as fronteiras e, em muitos casos, em função das ditaduras, se produz no exílio - tal é o caso de Cortázar - principalmente na Espanha, de forma que os grupos, os estilos e as tendências literárias não coincidem com as divisões políticas e também geográficas.
Como já colocamos em destaque anteriormente, o conto, expoente desta narrativa que se agigantava, é posto em relevo por Borges, quem inicia seu ciclo com El jardín de los Senderos que se bifurcan (1942), obtendo seu clímax por assim dizer com Ficciones (1944) e El Aleph (1949). Nos anos 50 nos encontramos diante de uma década prodigiosa, na qual se revelam dentro deste gênero todos os grandes representantes da nova narrativa.
Com efeito, em 1951, aparecem os primeiros relatos do uruguaio Juan Carlos Onetti, Un Sueño realizado y otros cuentos. É neste limiar de uma nova narrativa que Cortázar publica então Bestiario e, junto com ele, Juan José Arreola lança seu Confabulario, enquanto o paraguaio Roa Bastos nos afronta com o espetáculo alucinante de seu país em El trueno de las hojas. Ao ponto de partida de todas as inovações com Borges, já citado, sucede-se em 1953 outro fabuloso relato El llano en llamas, do mexicano Juan Rulfo, seguido por outro mexicano, também revelação, Carlos Fuentes, com seu Los días enmascarados. Pouco tempo depois, em 1955, o colombiano Gabriel García Márquez nos surpreende com o mundo alucinante de Macondo no conto La hojarasca. O cubano Alejo Carpentier publica Guerra del tiempo e o guatemalteco Miguel Angel Asturias um novo testemunho de seu país com Weekend en Guatemala. Já em 1958, o peruano Vargas Llosa se une a esta narrativa com Los jefes, romance que também compartilha produtos de sua experiência pessoal.
Em termos gerais, visando a ampliar um pouco mais esta comunicação, podemos afirmar que há um ponto em comum entre todas estas várias manifestações literárias, permitindo-nos visualizar um eixo que as une a um só núcleo temático. Este aspecto, contagiante em todos estes autores, se encontra em seu afã de renovação, o cultivo do nativismo, do relato mágico, do conto fantástico, psicológico, expressionista e comprometido, que preparará a década seguinte na qual aparecerão todas as obras importantes do “boom” hispano-americano. Enfim, pela importância deste período, bem como pela grandeza dos autores que nele publicam suas obras, pareceu-nos imprescindível traçar este breve quadro, de suma relevância para a compreensão da obra cortazariana.
Imagens num mesmo espelho
Ao falarmos sobre o escritor Julio Cortázar estamos, automaticamente, nos referindo não a uma entidade, mas sim a várias, que se complementam como um todo, unidas num mesmo plano. Assim se nos revela este excêntrico personagem: um único ser dotado de um caráter polimorfo, que se ramifica em espectros que ganham autonomia e mobilidade dentro de seus respectivos espaços míticos, simbólicos, atemporais, dando vida ao texto e abrindo espaço para múltiplas visões da mesma realidade, como se tudo passasse pelo crivo de um caleidoscópio.
Com efeito, observamos ao longo de sua produção literária uma linha perene e contínua que conduz os diferentes relatos de suas obras, ao final, a um confronto no mesmo espelho, mas que não necessariamente representa o final do ciclo, senão o seu novo começo. Num jogo constante de atração e repulsão, o autor consegue estabelecer um discurso que se reinventa e se auto-afirma na composição de inúmeras realidades, sendo estas, porém, faces de uma mesma moeda. Em termos de analogia, poderíamos imaginar a seguinte situação: as inúmeras leituras propiciadas pela obra-caleidoscópica seriam luzes incidindo em um mesmo cristal, que gera brilhos e imagens diversos ao ser observado de posições díspares, formando desenhos peculiares aos olhos dos diferentes observadores.
Não é uma tarefa simples penetrar no âmbito de seus textos sem que, antes disto, tenhamos que desfazer a névoa que se interpõe entre nossos olhos e o mundo que nos cerca, para que, então, livres desta sombra que nos prende ao plano aparente da realidade, possamos ingressar no universo mágico de “sua realidade”, ou seja, nada mais que a captação de um plano superior, onde se diluem as aparências para dar lugar às essências, como a metáfora e a alegoria, que conseguem exprimir com maior excelência o universo humano. Deste modo, suas obras nos apresentam um universo mais sensível, que desvenda o ser humano perdido em seu labirinto existencial, ou melhor, nos leva ao desvendamento de nós mesmos enquanto co-participantes deste mundo em transformação, que no final das contas não passa de uma mera criação de nossa arguta imaginação.
O presente escritor - podemos dizer sem medo de errar - é, portanto, aquele que explora incessantemente o mesmo tema, revisitando-o a cada novo passo, sempre envolto no mesmo texto que, a partir de sua apreensão pelo leitor, vai ganhando dimensões sui generis e também inexauríveis. Mas há que se dizer que tais dimensões não fogem ao mesmo plano que se constrói no confronto entre o “eu” e o “outro”, metáfora que desvela, encobrindo e descobrindo, o encontro da realidade verdadeira e definitiva por debaixo das máscaras; por um lado o toque fugaz nas essências e, por outro prisma não excludente, o reconhecimento de si mesmo mediante tão desviada e certeira via. No entanto, acrescente-se a isto o fato de que este encontro com o “outro”, seja quem for, é a metáfora do próprio processo literário e, por conseguinte, do próprio processo imaginativo.
Cortázar, assim como outros escritores contemporâneos como García Márquez e Borges, embora caminhe por diferentes espaços e trilhe rumos distintos no decorrer de seu processo de criação, acaba repetindo suas pegadas, pois todos seus textos se consubstanciam num texto maior e mais opulento, que reafirma todo o processo e se faz único mesmo diante da pluridiscursividade alcançada pelas páginas fecundas de suas produções. São, portanto, imagens num mesmo espelho, reflexos que transcendem as impressões desta realidade que não consegue se afirmar por si própria e que, portanto, se torna ínfima se comparada a potencialidade do discurso literário, este sim um mundo aparte.
Palavras finais
A título de resumo, podemos afirmar que existe uma rede entrecruzada de artifícios narrativos que se reiteram na produção dos textos, formando, então, um grande texto simbólico que acaba por representar em seus domínios alegóricos um verdadeiro arquétipo das relações humanas. Este microcosmo literário articulado por Cortázar se desenvolve ao longo de sua produção literária, sempre permeada pelo imaginário da narrativa contemporânea do “Boom” hispano-americano.
Absorvendo as idéias que fora buscar entre um emaranhado de textos os mais diversos, Cortázar as redimensiona e as aplica no conjunto de seus textos, sempre no intuito de mostrar a necessidade da busca pelo outro, do que ainda está por vir e por descobrir, cujo desejo está na essência do espírito humano. É a eterna busca pelo desvelamento de si mesmo, da resposta para o deciframento da condição humana, que pode estar no outro, em nós, ou ainda na relação de aproximamento entre ambos, mas que sem dúvida deve estar nas linhas prolíferas dos textos cortazarianos, cabendo ao leitor a tarefa de traduzir os códigos lingüísticos que o separam da resolução, deste achado simbólico. Contudo, aos olhos deste intraduzível escritor, o que importa nesta tarefa é a predominância do sentimento unitivo, fator inexorável ao universo de seus contos.
Seja por meio de enigmas, de interseções de níveis narrativos ou mesmo pela transponibilidade de barreiras espaço-temporais, o narrador, representante privilegiado do escritor no universo ficcional, sempre consegue abrir passagens atemporais e fantásticas que tornam viáveis o acesso “ao outro lado”, o desconhecido, ao qual o leitor pode interagir como num toque de mágica. Por meio das palavras elucidadoras de Ángel Rama (1978, p.170), que parecem encaixar-se perfeitamente em nosso comentário, concluímos que:
“Por sutil e inacessível que seja, a permanência fixa, obsessiva dessa atitude é a que nos permite reencontrá-lo tanto no primeiro texto quanto no último que escreveu. O que nos permite compreender por que sua arte está afastada de toda linearidade evolutiva e, em troca, traça círculos, retornos, espirais e constrói “personagens” que implicam os mesmos pontos recorrentes do desenho, situados sobre diferentes valores ou campos culturais e que foram transpostos analogicamente, pois o autor é uma vítima (prazerosa como um pecador impenitente) do demônio da analogia.”
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