por Ademar Bogo [*]
Há quem queira dividir o mundo entre “bons” e “maus”, mas não é correto fazer isto Podemos sim, entender e dividir o mundo de outras maneiras; entre pobres e ricos; entre os que comem e os que não comem; entre revolucionários e contra-revolucionários etc.
Somos por natureza nômades e migrantes, porque estamos sempre em busca de soluções. Acontece que, na atualidade, o capitalismo já não apresenta soluções e por isso os povos migram sem destino.
Temos um poeta brasileiro, João Cabral de Melo Neto, que há cinqüenta anos atrás já previa poeticamente a barbárie. A região em que ele viveu é o nordeste do país onde temos dez milhões de camponeses pobres; e por ser uma região seca, ele nos disse que ali a vida e também a morte são severas ou “Severina”. Elas existem, e se desenvolvem dentro dos seres humanos, e por isso as pessoas costumeiramente são batizadas com este nome: Severino ou Severina.
Nessa mesma região chegamos a ter uma população em que a média de altura chegou a ser 1,57m (um metro e cinquênta e sete centímetros) e por isso as pessoas são conhecidas pela denominação sociológica de “Gabirús”. Destes locais, fugindo da seca as pessoas vão deixando para trás o destino feito com todos os tipos de carências e por isso migram em busca de melhores dias, mas estes, não estão em lugar nenhum. Por isso, bem descreveu o poeta, “somos todos Severinos”, em seu poema Morte e Vida Severina [**] . E disse assim:
“O meu nome é Severino
Não tive outro de Pia
Como há tantos Severinos
Que é santo de romaria
Deram então de me chamar
Severino de Maria.
Como há muitos Severinos
Com mães chamadas marias
Fiquei sendo o da Maria
Do finado Zacarias.
Mas isto ainda diz pouco
Há muitos na freguesia
Por causa de um coronel
Que se chamou Zacarias
E que foi o mais antigo
Senhor destas sesmarias.
Como então dizer quem fala
Ora a vossas senhorias?
Vejamos: É o Severino
Da Maria do Zacarias
Lá da Serra da Costela
Limite da Paraíba.
Mas isto ainda diz pouco
Se ao menos mais cinco havia
Com nome de Severino
Com mães chamadas marias
Mulheres de outros tantos
Já finados zacarias
Vivendo na mesma serra
Magra e ossuda em que eu vivia.
Somos todos severinos
Iguais em tudo na vida
Na mesma cabeça grande
Que a custa é que se equilibra
No mesmo ventre crescido
Sobre as mesmas pernas finas
E iguais também porque o sangue
Que usamos tem pouca tinta.
E se somos severinos
Iguais em tudo e na vida
Morremos de morte igual
Mesma morte severina
Que é a morte de que se morre
De velhice antes dos trinta
De emboscada antes dos vinte
De fome um pouco por dia.
De fraqueza e de doença
É que a morte severina
Ataca em qualquer idade
E até gente não nascida.
Somos todos severinos
Iguais em tudo e na sina
Há de abrandar estas pedras
Suando-se muito em cima
Há de tentar despertar
Terra sempre mais extinta
E há de tentar arrancar
Algum roçado das cinzas.
Mas para que nos conheçam
Melhor essas senhorias
E melhor possam saber
A história de nossa vida:
Somos todos severinos
Que pelo planeta emigra”.
O nosso tema hoje, dentro desta ampla discussão sobre “Civilização ou Barbárie” é Revolução e Contra-revolução, juntamente com a ALCA, a Via Institucional na Luta Pelo Poder e a Atualidade do Marxismo.
Podemos iniciar dizendo que, se entendemos a revolução como um processo longo, sem tempo e lugar para chegar, concluiremos que estamos a caminho e todas as iniciativas e esforços são úteis dentro deste tempo indefinido. Se entendemos que a revolução pode ser um processo longo, mas que há um momento em que as forças revolucionárias necessitam definir com quem fica o poder, então estamos em desvantagem em relação a contra-revolução.
Nossa intenção aqui é falar de coisas muito práticas que estão ligadas às circunstâncias históricas e a própria trajetória que a revolução e a contra-revolução tiveram na América Latina.
Quando iniciamos o nosso Movimento tínhamos no Brasil uma ditadura militar, e portanto, um general na presidência da República. Completamos 20 anos e temos hoje um operário governando o País. Embora o operário fosse, na época, perseguido pelo general por suas idéias e práticas revolucionárias, ao chegar ao governo não fez avançar a revolução, pois se propôs a dar continuidade ao modelo econômico estabelecido pela ordem política, econômica e militar das potências capitalistas mundiais.
Mas isto não ocorreu apenas no Brasil! Quando iniciamos o nosso Movimento em 1984, vivíamos o auge do triunfo da revolução nicaraguênse. As lutas guerrilheiras da Guatemala, Peru, Colômbia e principalmente, o processo revolucionário de El Salvador, nos dizia que a revolução estava batendo à nossa porta e que a conquista do poder e a construção do socialismo era uma questão de tempo apenas. As condições estavam dadas.
A ideologia e a filosofia marxista faziam parte desta cultura de lutas e não se encerravam atos e encontros sem antes gritarmos com o punho esquerdo levantado: Viva a revolução e o socialismo!
Presenciamos um processo de desconstrução combinado. Tivemos no Brasil em 1989 uma derrota eleitoral ao mesmo tempo em que na Alemanha se derrubava o muro que separava o socialismo do capitalismo. Logo em seguida ruiu o bloco socialista do Leste Europeu e junto começou a desmoronar na consciência de intelectuais e lideres políticos o patrimônio do conhecimento marxista, colocando-se sobre ele o que se está chamando de “pensamento Pós-modermo”, que não explica nada, ao contrário, confunde e desqualifica o mundo das idéias e das práticas.
Desta forma percebemos que a contra-revolução avançou e se desenvolveu por dois caminhos: Liberalismo e reformismo.
Primeiro - O liberalismo ou neo-liberalismo, se tornou o referencial das forças de direita; estas rearticularam o modelo, recolocaram as suas forças e atacaram com meios mais suaves do que a violência física praticadas pelas ditaduras em quase todos os nossos países latinos americanos.
Primeiramente foram vítimas do modelo as categorias operárias e dos serviços públicos. Os meios usados, eficientemente, foram as privatizações e o emprego de tecnologias avançadas. Ao mesmo tempo em que rebaixavam os salários desempregavam em massas os operários das fábricas.
A classe operária foi diminuída em seu tamanho. O capital externo se apropriou do patrimônio público nacional e os governos, colocaram-se a serviço do império tornando os Estados mais violentos e menos prestativos.
Esta articulação entre: empresas, capital financeiro, Estados nacionais e o império, fizeram este trabalho de aniquilamento das forças revolucionárias e agora, após terem feito este desmonte estrutural da economia nacional urbana, voltam-se para a agricultura e para os locais que concentram matérias-primas fundamentais para uma nova impulsão do capitalismo, como é o caso das florestas, dos minérios, da água doce e das sementes.
Neste sentido é que o modelo se torna imperial do tipo exploração neo-colonial, onde os países além de serem saqueados de suas riquezas, são desautorizados de sua soberania e anexados ao poder central do império de um único país.
De que maneira isto se concretiza?
Através pelo menos de três aspectos:
a) Econômico – voltamos ao patamar de colônia. O meio de acumulação é o saque e a apropriação indevida das riquezas naturais, com o uso da violência física e moral. Os indígenas agora somos todos a grande maioria dos 800 milhões de seres humanos que vivemos nesta Área de Livre Comércio formada por 34 países.
b) Político, jurídico e militar- As decisões, políticas as condenações e os ataques militares virão de fora das colônias. O império tem sua casa protegida, por isso ataca os bárbaros e não civilizados fora de seu território.
c) Cultural - O império necessita destruir os valores e hábitos culturais para erradicar as resistências e controlar as desobediências. As diferenças incomodam demais e o ciúme “civilizatório” não permite que as coisas mais belas e interessantes não estejam sob o seu poder. Por isso, não tendo capacidade de absorvê-las e utilizá-las, as destrói como o menino rico que rasga a bola do menino pobre feita de meia, porque não sabe jogar de pés descalços.
Segundo – O reformismo e o oportunismo tornaram-se prática das forças de esquerda. Estas, no momento em que deveriam organizar e precipitar a revolução entraram em descompasso com o tempo diminuindo o potencial organizativo, rebaixando o nível ideológico, descaraterizando a própria identidade e destruindo a auto-estima militante.
Neste sentido é que podemos perceber pelo menos três grandes limitações que levaram a colaborar com a contra-revolução.
1º– O CUIDADO DA REVOLUÇÃO.
As forças contra-revolucionárias cuidam da contra-revolução, mas as forças “revolucionárias” se descuidaram desta tarefa e passaram a cuidar de alternativas que interceptaram o caminho da revolução.
Se aos movimentos sociais e aos sindicatos cabia cuidar da luta por conquistas imediatas, aos partidos políticos cabia a responsabilidade da formulação estratégica que indicasse o caminho para a tomada do poder. Como isto não ocorreu, e os partidos na sua totalidade (ao se dedicarem aos processos eleitorais), retrocederam à natureza ao nível dos movimentos de massas, tornado-se em vários casos em partidos cartoriais, de massas para uso eleitoral apenas.
2º– A RELAÇÃO ENTRE A LUTA ECONÔMICA E A LUTA POLÍTICA
Na medida em que o modelo econômico do império foi ganhando qualidade, as lutas corporativas foram perdendo a importância no sentido em que suas táticas não atacavam o inimigo principal. Neste sentido, a falta de visão estratégica das forças políticas levaram também ao esgotamento das lutas econômicas. Justamente no momento em que as lutas necessitavam atingir patamares nacionais e internacionais, os movimentos sociais e os sindicatos entraram em descenso.
Na ausência de mobilizações somadas à falta de perspectivas políticas, a contra revolução nos imprimiu duas derrotas fenomenais: a cooptação das forças de esquerda e a colocação dessas forças a seu serviço.
O processo eleitoral a nível continental, induziu as forças revolucionárias desmobilizarem as suas táticas e adotarem as táticas da contra-revolução para disputarem um lugar um lugar no parlamento, “doce lar da burguesia”. Quando mais precisávamos de comandantes, nossos líderes partidários transformaram-se em candidatos. Necessitamos de comandantes para conduzir a revolução e não de presidentes.
Mas a contra-revolução foi além do desmonte político ideológico das forças de esquerda, as elevou ao nível de governo e as colocou a seu serviço na implementação das reformas, o elo que faltava para fechar o circulo do modelo neoliberal. Porque estas, por tratarem da negação dos direitos adquiridos, somente com a conivência das organizações dos trabalhadores, lideradas por líderes populares seria possível. E as forças da social-democracia e de esquerda conseguiram realizar esta façanha não só nas Américas mas também em outros continentes do mundo.
Neste sentido é que intelectuais e lideres populares (como é o nosso caso), começamos a acordar e a nos dar conta de que, entre lutas sociais, sindicais e disputas parlamentares não há diferença, estão todas no mesmo patamar. Ou seja, enquanto as lutas sociais e sindicais nos levam até as conquistas econômicas, as disputas parlamentares nos levam até as reformas. Estas últimas satisfazem sempre mais à direita quanto menor for a pressão popular, mas, jamais por si só levarão a classe trabalhadora ao poder.
3º– O DILEMA ENTRE A ESPONTANEIDADE E A CONSCIÊNCIA
A espontaneidade é característica constitutiva dos movimentos sociais e da luta sindical. É onde se exercita a prática da formação da consciência. Ocorre que, há momentos em que a espontaneidade ganha formas de insurreição e então é o momento propício que as forças revolucionárias tem para tomar o poder.
Vivemos muito nitidamente esta situação recentemente no Equador e na Argentina, mas por falta de organização partidária e despreparo político das massas, o esforço foi desperdiçado.
Casos semelhantes são os da Venezuela e do Brasil. Na Venezuela na Venezuela não se pode atribuir o mérito do processo revolucionário lá desencadeado ás disputas eleitorais, isto porque, vários anos antes de Chaves candidatar-se à presidente da república, houve uma tentativa de tomada do poder através de um levante militar. As massas não estavam preparadas para a insurreição. Reconhecendo a impossibilidade de tomar o poder, Chaves e seu grupo depuseram as armas e se prepararam para um momento seguinte. Neste caso a disputa eleitoral serviu de meio para convocar as massas a reiniciarem a revolução.
No Brasil a eleição de Lula serviu para canalizar o descontentamento das massas contra o modelo e com isso comparecemos ás urnas e elegemos o Presidente com 65% dos votos. Sua popularidade e aceitação logo após a posse, chegaram ao patamar dos 80%. Mas o descontentamento não tinha caraterísticas insurrecionais, nem o governo tentou despertá-la e, por não haver contestação da contra-revolução aos métodos utilizados para governar, nem pressão popular, o modelo derrotado nas urnas ressurgiu no programa de governo com maior vigor. As massas vivem um período de “anestesia crítica”, ou seja, sabem que ganharam as eleições, mas não porque não estão tendo melhoras, e as elites sabem que não perderam e porque estão ganhando. O presidente tem o coração voltado para as massas que o elegeram, mas a cabeça voltada para a ordem capitalista. Não há portanto revolução sem comando e idéias revolucionárias.
Estamos vivendo em alguns lugares, a mesma situação vivida na Alemanha em 1918, onde as massas levaram a revolução até as portas do poder, mas os partidos se negaram a concluí-la.
Os recuos e deformações que impedem a revolução de avançar podemos constatar da seguinte forma:
A utopia socialista foi substituída pela topia parlamentar.
A elaboração teórica marxista cedeu lugar ao pensamento pós-moderno seguindo a influência pensamento único.
As lutas de massas deixaram de ser prioridade e a atração passou ser a disputa eleitoral
O militante político foi substituído pelo cabo eleitoral conquistador de votos e não construtor de consciências.
A aliança das forças políticas e sociais de caráter classista se conformou na composição de forças de interesses capitalistas e oportunistas.
Os princípios filosóficos e revolucionários, da direção coletiva, disciplina consciente, vinculação com as massas, trabalho de base etc. foram renegados.
As lutas e enfrentamentos entre as classes foram substituídas por entendimentos, câmaras setoriais e composição de conselhos articulados pelo governo.
O quadro político se transformou no de administrador público que entende de contas e contenção de gastos mas nada de revolução.
De modo que, estas duas vias da contra revolução produziram as circunstâncias históricas de desencanto que estamos vivendo em muitos lugares no mundo.
Mas não cabe aos revolucionários a acomodação. As dificuldades foram feitas para serem ultrapassadas. Por isso precisamos dedicar muito mais esforço para enfrentar a contra revolução e devemos começar pela recolocação da utopia socialista. O horizonte é o socialismo o meio para chegar até lá é a revolução.
A partir disso precisamos articular as idéias em torno de um projeto político que faça frente ao imperialismo em todos os seus aspectos. Este projeto deve orientar as lutas de massas, formar a consciência de classes, multiplicar quadros e elevar o grau de solidariedade entre os povos e explorados do mundo.
Por fim, devemos elevar o nível das disputas e articular nossas forças a nível internacional. Até então o imperialismo tem sido internacional, mas não cabe a ele este direito. A solidariedade e a ética revolucionária terão que vencê-lo.
Esta articulação dos povos explorados elevará nossa consciência e nossa capacidade de lutar contra a barbárie e nos colocará no caminho da transformação total e completa do capitalismo.
Para isto precisamos abandonar o objetivo de sermos apenas de “esquerda”, precisamos elevar-nos ao grau de revolucionários.
[*] Do MST brasileiro. Comunicação apresentada no Encontro Internacional "Civilização ou Barbárie", Serpa, Setembro de 2004.
[**] O poema é de João Cabral de Melo Neto.
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