terça-feira, 29 de abril de 2008

FARC-EP: A IMAGEM DA GUERRILHA ATRAVÉS DE TEXTOS REDIGIDOS POR GUERRILHEIROS



Comandante Jacobo Arenas





, por Julio Cesar da Silva Lopes*

e-mail
: julio_hist@hotmail.com


Data do texto: Ano 2005, publicado na Revista Mediações (da UEL) em 2006, v 10, p. 91-104



Nas últimas décadas, as associações entre o tráfico de entorpecentes, os cartéis colombianos e as guerrilhas revolucionárias divulgadas principalmente pela mídia norte-americana e o governo colombiano parece ter se tornado quase um processo natural, como se a cocaína e a guerrilha se autocompletassem, fossem como uma única “doença” que deveria ser combatida e erradicada para a proteção da sociedade ocidental. A imagem que os Estados Unidos e o governo colombiano constroem de que as FARC-EP (Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pueblo) seriam um grupo guerrilheiro com raízes no narcotráfico, nos obriga a uma análise mais detalhada do surgimento do movimento, assim como o contexto histórico, principalmente na América Latina e Colômbia, na tentativa de mostrar que os fatores que levaram os camponeses a se revoltar contra o governo e a elite colombiana na metade do século XX não tinham ligações com o tráfico de entorpecentes.

Nesse sentido, o papel da mídia enquanto formadora de opiniões ganha relevância, pois os interesses do governo norte-americano em controlar os poços de petróleo colombianos e em aumentar sua presença militar na América Latina são encobertos pela mídia, que cria a imagem de que os Estados Unidos, assim como o governo colombiano, estariam interessados apenas no combate ao narcotráfico mundial e, na medida em que as FARC-EP são uma ameaça ao governo da elite colombiana, associá-la ao tráfico de drogas torna-se extremamente vantajoso, garantindo-se assim mais investimentos para o Exército com o Plano Colômbia e, ao mesmo tempo, combatendo seu inimigo na tentativa de eliminá-lo, procurando manter o status quo do cenário político colombiano, além de camuflar o envolvimento de membros dessa mesma elite e setores do governo com os traficantes de drogas. 2 As diferentes visões se concretizam, de um lado, nos documentos oficiais produzidos pelo Estado Maior Central das FARC-EP e o seu periódico Resistencia, assim como periódicos e historiadores da esquerda, e de outro lado, principalmente, a mídia norte-americana e os jornais colombianos que apóiam o governo (como El Espectador e El Tiempo, em menor escala). Dessa maneira, a idéia de que nenhum documento produzido é inocente se reforça, além do fato da tentativa de “demonização” do inimigo, colocando-o como uma ameaça ou algo ruim para a sociedade, para assim conseguir maior apoio popular e justificar certas ações, investimentos, a violência, ou até mesmo as centenas de mortes que ocorrem no campo todo ano. Nesse sentido, Bronislaw Baczko (1985) defende que para se legitimar um governo, uma revolução ou mesmo um grupo armado é preciso, segundo ele, possuir o controle do imaginário social, ou seja, incorporar aos ideais e às palavras de ordem de determinados grupos elementos que se possa garantir o apoio da população em questão, elementos esses que contenham os problemas cotidianos e as pretensões ou idéia de uma vida melhor para essa população. Passar a imagem de que o grupo insurgente é constituído por criminosos, assassinos e traficantes é uma forma da oligarquia manter-se no poder, alegando que as guerrilhas seriam constituídas por pessoas que não condizem com os modelos e exemplos de heróis ou defensores que a população possa ter. Da mesma maneira que a guerrilha busca tocar (e de certa forma, reconstruir) o imaginário social da população, colocando-se como seus defensores perante um governo corrupto que não se importaria com os interesses e necessidades da sua população.


Contexto Histórico das Guerrilhas na Colômbia
A rivalidade entre conservadores e liberais na Colômbia tornou-se mais presente após a guerra civil (Guerra dos Mil Dias, de 1899 a 1902), onde os conservadores saíram como vitoriosos e dominaram a cena política do país até 1930, quando Partido Liberal voltou ao poder com a eleição do candidato liberal Enrique Olaya Herrera (1930-1934), enfrentando dura resistência de parte da população, que alegava que os novos funcionários do governo (liberais) estariam reprimindo a população e funcionários reconhecidamente conservadores. Devido a uma cisão no Partido Liberal, a minoria conservadora voltou ao poder com a eleição de Mariano Ospina Pérez (1946-1950). A rivalidade entre os dois partidos estaria presente na vida da população, assim como o seu descontentamento com seus presidentes, que se preocupavam somente com os interesses da oligarquia.

Em 1948, Jorge Eliecer Gaitán, o candidato liberal à presidência foi assassinado em Bogotá. Gaitán era um político carismático, visto por muitos como um defensor do povo, que em seus discursos atacava a oligarquia de ambos os partidos, acusando-os de governarem segundo seus próprios interesses. A revolta do povo com o assassinato de seu “defensor” gerou enormes protestos pela capital do país, e a forte ação repressiva do Exército, a mando do partido Conservador, culminou em um massacre na capital, conhecido como Bogotazzo, se espalhando pelo país, originando confrontos na zona rural entre simpatizantes dos dois partidos. O período que se seguiu, conhecido por La Violencia (de 1948-58) deixou, segundo vários autores como Eric J. Hobsbawm em “Rebeldes Primitivos”, um saldo de mais de 300 mil mortos na Colômbia. Nesse contexto, grupos armados surgiram e se espalharam pelas montanhas e planícies do país com o intuito de defender camponeses e suas terras de possíveis ameaças que pudessem ocorrer. Piorando esse quadro de guerra civil, além das autodefesas constituídas por pequenos proprietários, espalhava-se pela zona rural do país grupos particulares, financiados por grandes proprietários, além de bandos de saqueadores e assassinos, trabalhando para quem pudesse pagar mais pelos seus serviços, ou simplesmente para o enriquecimento de seus líderes.

Segundo Miguel U. Rodrigues em “A Saga das FARC-EP”, Gustavo Rojas Pirilla (1953 a 1957), que assumiu a presidência em um golpe de Estado, ofereceu anistia aos grupos guerrilheiros, mas alguns desses grupos, ao saber que o Partido Comunista Colombiano não entregaria suas armas, não aceitaram a rendição e fundiram-se, formando grupos maiores. Segundo alguns autores, o número de mortos no período de 1949 a 1953 teria passado de cem mil. Com o fim dessa primeira guerra de guerrilhas em 1954, os novos grupos armados ressurgiam já com maior influência do Partido Comunista, e não mais liberal. Muitos grupos guerrilheiros se uniriam em determinadas regiões para melhor se adequarem à defesa contra os ataques do Exército colombiano, a Polícia Nacional e grupos de assaltantes, além de suprir suas deficiências. A essa altura, as autodefesas dos departamentos de Caldas, Valle, Cauca, Santander e Norte de Santander ainda eram descentralizadas, com raízes no bandoleirismo, mas nos departamentos de Tolima e Antioquia já estavam presentes grupos bem organizados e, de certa forma, homogêneos, diferentemente das primeiras guerrilhas da década de 1950, formadas algumas vezes por camponeses, assassinos, assaltantes, ou qualquer ou pessoa que quisesse entrar para o grupo.

No início da década de 1960, alguns focos de guerrilha teriam proclamado as áreas sobre o seu controle Repúblicas Independentes (seriam 16 espalhadas pelo território), o que para o governo colombiano e os Estados Unidos, durante a Guerra Fria, não eram uma boa propaganda para o bloco capitalista, pois tais Repúblicas configurava-se em “bolsões comunistas” dentro da Colômbia, e esses movimentos separatistas poderiam servir de exemplo para outros mais que pudessem ocorrer em outras regiões do mundo. O governo, através da sua propaganda, teria inventado a fundação da República Independente de Marquetalia (já sob o comando de Manuel Marulanda Vélez) que, fundada por comunistas, supostamente teria o objetivo de se separar do resto do país, como os outros focos guerrilheiros estariam fazendo. A guerrilha de Marquetalia era, segundo vários autores, um grupo de camponeses reunido com sérios problemas como escassez de comida e deficiente em meios, com o propósito de autodefesa não configurando-se em uma República Independente, como o governo teria dito. O ataque do Exército colombiano a essa região em 27 de maio de 1964 acabou por criar o que posteriormente seria o mito fundacional das FARC, dando ao grupo motivos para continuar sua luta insurgente contra o governo autoritário. Tal ataque teria feito com que as autodefesas se tornassem guerrilhas móveis, unindo-se na chamada Frente Sur (ou Bloque Sur), constituído principalmente pelos grupos de Marquetalia, Río Chiquito, El Pato, Guayabero e 26 de Setiembre, entre outros. Tal grupo definiria melhor seus objetivos e estratégias na sua primeira conferência oficial em 1965, rebatizando o grupo na segunda conferência em 1966, como Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Para Eduardo Pizarro Leongómez (2004), o governo dava cada vez mais motivos para que os grupos insurgentes se organizassem, pois segundo ele, à medida que os ataques às autodefesas por parte do Exército cessassem, não haveria mais motivos para que esses grupos continuassem existindo. Tal ataque contra Marquetalia e as outras chamadas Repúblicas Independentes teria contribuído para fortalecer o discurso das guerrilhas, lutando por reforma agrária e contra a brutalidade do governo colombiano, apoiado pelos Estados Unidos.

O final da década de 1960 e início de 1970 foi marcado por uma certa instabilidade dentro do grupo, devido a cisões dentro do Partido Comunista, dividindo-se no apoio às autodefesas das FARC ou à postura mais ofensiva do ELP (Ejército de 5

Liberación Popular), além de outros problemas como a perda de uma referência maior como o padre Camilo Torres em 1966 e Che Guevara em 1967, além desistência de vários grupos em apoiar a luta armada e uma certa desarticulação entre as frentes das FARC. Em 1973, parte dos integrantes das FARC e da ANAPO (Alianza Nacional Popular) fundaram um outro grupo, o Movimento 19 de Abril (M-19), com maior apoio da classe média urbana e uma postura mais radical de luta. Mesmo passando por esses problemas, o grupo teria se estabilizado nos anos seguintes, traçando na sua conferência de 1978 um estatuto de disciplina para os guerrilheiros, a criação de mais postos de comando e a descentralização do comando, dando às frentes mais autonomia para agir, preparando-se para a concretização de um exército revolucionário. Nesse meio tempo, as ações repressivas do governo se intensificaram, principalmente após a eleição de Júlio César Turbay Ayala (1978-82), que teria assumido a presidência com acusações de fraude eleitoral e ajuda financeira de narcotraficantes. Mais uma vez, o Exército foi usado para controlar a agitação popular.


As FARC-EP Como Exército Revolucionário

A década de 1980 é marcada por um maior amadurecimento das FARC como grupo, mudando para uma postura mais ofensiva, realizando ataques a regiões ou povoados controlados pelo Exército e fazendo um trabalho de conscientização da população nas áreas próximas ao conflito, na tentativa de expor para essa população os ideais do grupo e seus objetivos, buscando maior apoio. Segundo documentos do Estado Maior Central da guerrilha, essas ações de defesa e conscientização da população levaram o grupo a adotar a sigla EP em 1982, declarando-se Exército do Povo, concretizando os planos de constituição de um exército revolucionário.

No ano de 1984, o então presidente Belisário Betancourt (1982-1986) tentou a pacificação, dando garantias aos grupos insurgentes que aceitassem tal acordo de participarem das próximas eleições. As FARC-EP, com apoio do Partido Comunista, fundaram seu partido, a União Patriótica (Unión Patriótica), que comprovou a popularidade do grupo elegendo vários dirigentes (14 congressistas e 18 deputados, além de centenas de cargos menores, como prefeitos e vereadores), porém o acordo de paz não foi mantido pelo Exército, fazendo com que os demais grupos como o ELN (Ejército de Liberación Nacional) e o M-19, entre outros, abandonassem o cessar-fogo. As FARC-EP teriam voltado à luta posteriormente, mas o sucesso da União Patriótica nas eleições não impediu que várias pessoas ligadas ao partido, inclusive dirigentes eleitos, fossem assassinados. De 1986 a 1998, estima-se que 4 mil pessoas ligadas à União Patriótica teriam sido assassinadas na Colômbia, seja diretamente pelo Exército, ou através de grupos paramilitares.

Mesmo durante o período de trégua, os grupos guerrilheiros ainda eram atacados por grupos paramilitares. A nova ofensiva do Exército fez com que as guerrilhas se unissem novamente, criando a Coordenadoria Guerrilheira Simon Bolívar (CGSB), formada pelas maiores guerrilhas do país, com o propósito de centralizar suas ações contra os inimigos em comum, além de um novo plano para a derrubada dos partidos tradicionais, que se alternavam no poder desde a criação da política da Frente Nacional em 1962, onde após o mandato de um presidente conservador, o próximo eleito deveria ser liberal, e assim por diante.

Nesse novo estágio, o periódico das FARC-EP, batizado de Resistencia (criado em 1978) é de suma importância, na tentativa de mostrar à população a situação caótica que se encontra o país, além de colocar as guerrilhas como defensoras dos direitos do povo, lutando contra um governo autoritário e corrupto. Dessa forma, os planos que o comandante Jacobo Arenas teria traçado na conferência de 1978 de um guerrilheiro alfabetizado e consciente da sua luta começavam a ser colocados em prática, buscando constituir um exército consciente do seu papel, tanto social quanto politicamente.

O clima de guerra entre o governo e as guerrilhas permanecia, e ficou mais intenso com os assassinatos de Luis Carlos Galán, do partido liberal em 1989, além de Carlos Pizarro Leongómez, membro da Aliança Democrática M-19 e Bernardo Jamillo da União Patriótica, ambos em 1990. O então presidente eleito Cesar Gaviria Trujillo, na tentativa de controlar a situação, convocou uma Assembléia Constituinte e ofereceu às FARC-EP, ELN (Ejército de Liberación Nacional) e uma parcela do ELP (Ejército de Liberación Popular) segundo seus documentos oficiais, 20 cadeiras para que o movimento participasse do processo, mas o grupo recusou o convite, temendo pela segurança de seus representantes. O apoio popular às guerrilhas e à União Patriótica a essa altura já era maior, porém, nesse mesmo ano, alguns grupos integrantes da Coordenadoria Guerrilheira Simon Bolívar como o ELP, o Quintim Lame e o M-19 entregaram suas armas, causando a ira dos demais grupos que continuavam a luta.

No dia da votação da Constituinte, 9 de dezembro de 1990, aproveitando as atenções voltadas para a nova Constituição, o governo lançou o ataque final ao acampamento de Casa Verde, que teria sido defendido heroicamente pelos guerrilheiros que ali estavam, até a tomada do acampamento. O episódio de Casa Verde é interpretado pelos guerrilheiros como uma repetição do ataque covarde de Marquetalia, gerando um pequeno texto muito rico, escrito por um guerrilheiro. Para Raul Reyes, um dos dirigentes da guerrilha, a ajuda financeira norte-americana do Plano Colômbia, teoricamente investida para o combate ao narcotráfico, estava sendo usada para o que realmente se constitui em um problema para o governo, ou seja, aniquilar as guerrilhas. A intervenção norte-americana, mais presente desde meados da década de 1980 e o episódio de Casa Verde levaram as FARC-EP a reformular em 1993 o seu Estado Maior Central, com o objetivo de centralizar e coordenar com mais clareza suas ações sem perder sua ideologia marxista-leninista, assim como os ideais antiimperialistas de Bolívar (e também Che Guevara) e unidade tanto territorial quanto popular. O que se percebe é que, como a guerrilha teria crescido consideravelmente, era necessário a volta de um comando central mais presente, tirando de certa forma a autonomia das 60 frentes espalhadas pelo país.

A Conferência de 1993, realizada durante um período de desentendimento nas negociações de paz com o governo, buscava, segundo documentos oficiais das FARC-EP, soluções para o fim da violência e caminhos para um país livre dos oligarcas e do imperialismo ianque. Para a guerrilha, o capitalismo (que concentra o dinheiro nas mãos dos oligarcas) seria o responsável pela miséria de mais de 18 milhões de colombianos. Nesse mesmo período, a repressão popular aumentou, assim como uma maior especialização (tanto em homens como em armas) do Exército e as tentativas de diálogo e pacificação tornaram-se cada vez mais raras. A essa altura, as acusações de envolvimento das guerrilhas com o narcotráfico aumentavam, justificando assim o uso do dinheiro do Plano Colômbia no combate às guerrilhas. O grande problema é que as áreas com maior concentração de grupos paramilitares (e conseqüentemente, pouca ou nenhuma presença das guerrilhas) são áreas com concentração de grandes proprietários de empresas e terras, entre eles, um grande número de narcotraficantes ligados aos cartéis de Cali e Medellín. A violência contra a população simpatizante à guerrilha continuou pelo país durante o governo de Ernesto Samper (1994-1998), também acusado de ter sua campanha financiada pelos traficantes. Alguns autores afirmam que os “barões da droga” também possuem exércitos de mercenários que, na tentativa de tirar a guerrilha das suas terras, ataca povoados que supostamente a apoiaria, visto que nessas áreas (como Urabá) muitos trabalhadores são obrigados a abandonar as plantações de banana para cultivarem folhas de coca em um regime de semi-escravidão. Segundo Jenny Pearce (1990 (2)), os barões da droga acreditam que ao combater os movimentos de esquerda e as guerrilhas, possam conseguir mais poder e, alguns benefícios vindos do governo, como por exemplo, o direito de poder refinar cocaína nas suas terras sem se preocupar com a fiscalização do governo.

Em 1999, iniciou-se uma nova tentativa de pacificação com o então presidente Andrés Pastrana Arango (1998-2002), criando uma zona desmilitarizada para o desenvolvimento das negociações entre o governo e a guerrilha. Em 2000 as FARC-EP criaram duas leis que deveriam ser obedecidas nos territórios controlados pela guerrliha: a Ley 002 sobre a tributação, onde os grandes empresários deveriam pagar uma taxa (ou mehlor, um imposto) que deve ser revertida em investimentos sociais e a Ley 003, contra a corrupção entre os governantes. Nos anos seguintes o grupo continuou crescendo e desenvolvendo novos planos e estratégias para concretizar seus objetivos. No ano de 2004 o grupo comemorou 40 anos da sua fundação, com mais de 15 mil pessoas nas suas fileiras, com grande apoio da população rural e da opinião pública tanto nacional quanto mundial, chamando a atenção para os problemas e as possíveis soluções para a construção de um país, segundo eles, mais justo e digno para sua população.


A Construção de Imaginários Sociais

A idéia de associação do inimigo ao consumo e tráfico de entorpecentes é uma prática comum desde a Guerra Fria, onde os dois lados acusavam-se por tentar alienar sua juventude e destruir seus modelos de sociedade ideal através do consumo de drogas ilícitas. Com a eleição de Ronald Reagan em 1980, cada vez mais os Estados Unidos apoiavam-se nos seus simbolismos, na sua superioridade bélica, desenvolvendo um discurso preocupando-se mais com o narcotráfico, já que o “Império do Mal”, ou melhor, a União Soviética começava a dar sinais de que o inimigo estava se enfraquecendo. O narcotráfico agora era visto como a mais nova ameaça à sociedade norte-americana, que no seu discurso incluía a idéia de que este se constituiria em uma guerra revolucionária, visto que os comunistas usariam o narcoterrorismo para provocar desequilíbrios sociais e, conseqüentemente, destruir a sociedade ocidental. Segundo Renssealer Lee III em La Conexión Narco-Guerrillha (1992), a associação que o governo faz dos grupos insurgentes com o tráfico, ou seja, a tese da narco-guerrilha, é enganosa e oculta na verdade a crescente penetração de narcotraficantes nas instituições políticas e econômicas do país.

O norte-americano Noam Chomsky (1996) critica a postura norte-americana em estar sempre criando novos inimigos para continuar o desenvolvimento da sua indústria bélica e justificar sua presença militar em diversas áreas do globo. Um bom exemplo disso é a invasão do Panamá no final 1989, mesmo ano que os norte-americanos deveriam retirar suas tropas do país. O presidente Noriega teria sido derrubado sob acusações de envolvimento com o tráfico de drogas e o país acabou invadido pelo exército norte-americano. No caso colombiano, desde a implantação do Plano Colômbia em 1999, nota-se a maior presença de tropas norte-americanas no país, assim como o aumento de oficiais norte-americanos nos postos de comando do Exército colombiano, além de uma maior especialização (treinamento e equipamentos) dos grupos paramilitares. Vale repetir que, para o governo colombiano, as guerrilhas e o seu crescente apoio popular constituem-se em ameaças muito mais concretas do que o narcotráfico e, para os Estados Unidos, esse é somente mais um pretexto para afirmar sua presença militar na América Latina.

A produção cultural dos guerrilheiros mostra-se muito rica, com textos ou poemas, tratando desde idéias e exemplos de luta, o cotidiano no acampamento, a visão do guerrilheiro sobre determinados assuntos como a violência ou o narcotráfico, além de outros temas. Um dos textos mais importantes narra o ataque ao acampamento de Casa Verde em 1990, buscando mostrar alguns aspectos dos homens que tiveram que defender o acampamento. O episódio de Casa Verde possui grande significado entre os guerrilheiros, sendo considerado uma repetição do ataque a Marquetalia em 1964, visto que mais uma vez o governo teria lançado um ataque maciço contra a guerrilha em um período de trégua. Vale lembrar que em 10 de agosto de 1990 morreu, vítima de um ataque do coração, o comandante Jacobo Arenas, visto como um grande líder entre os guerrilheiros, devido a várias ações suas e reformas propostas para a constituição de um guerrilheiro mais consciente, aproximando-se em muitos casos de uma figura paternalista, por prezar certos valores entre os integrantes da guerrilha. Devido ao seu grande carisma, sua morte teria sido um grande impacto entre os guerrilheiros. A ofensiva final contra Casa Verde teria ocorrido em 9 de dezembro do mesmo ano.

O ataque, segundo Raul Reyes, em uma entrevista a Arturo Alape, era uma tentativa de se erradicar de vez os focos guerrilheiros no país. Nos últimos dias do cerco à Casa Verde, Reyes relata que se constituía em “más de 40 aviones y helicópteros bombardeando durante el día desde las 6 de la mañana y hasta las 7 de la noche, con una contundencia en el ametrallamiento total en toda el área. Se trataba de aniquilar la guerrilla”. Devido a alguns conflitos na região entre tropas do Exército e guerrilheiros, esperava-se um ataque, mas não de tamanha magnitude. Vale destacar que tal ataque foi feito pelo governo em um período de trégua entre o governo e as guerrilhas, numa tentativa de se negociar a paz. Segundo Raul Reyes, a resposta dos guerrilheiros foi maior do que esperava o exército: um total de 110 baixas e 9 helicópteros abatidos pela guerrilha, que teria sofrido apenas 13 baixas.

O episódio de Casa Verde é visto como um exemplo de resistência para os guerrilheiros, que devem sempre se lembrar da bravura dos combatentes e a crueldade dos militares em efetuarem um ataque tão violento e repentino. O Estado Maior Central das FARC-EP consideram o ataque como uma traição, visto o contexto do processo de pacificação de 1990, com a entrega das armas de vários outros grupos guerrilheiros e um acordo de cessar-fogo entre o governo e as FARC-EP. Em certos trechos do texto, pode-se notar a ênfase dada à bravura dos que resistiram e à importância da imagem de Arenas para os combatentes:


Los pájaros, aunque acostumbrados a la magia, no entendían por qué el Comandante Jacobo Arenas se había ido para estar por siempre. La muerte acobardada lo sorprendió con su arma favorita: un libro. Algunos dicen que desde el libro le sonrió; otros cuentan que la muerte se sintió inútil: hay sonrisas que jamás se van. Ese diez de agosto eran todos los días.

Esse trecho mostra o quanto os guerrilheiros (representados por pássaros) teriam sentido a perda de seu comandante, engrandecendo a sua imagem de homem culto, tendo como arma favorita um livro, e até mesmo a morte teria hesitado em leva-lo. O trecho procura mostrar que a imagem de um comandante sempre sorridente permanecia entre os guerrilheiros nos dias seguintes e seu exemplo de vida, que deveria ser sempre lembrado e seguido. Em outro trecho é possível ver a imagem da bravura das pessoas que teriam defendido o acampamento:


Casa Verde nos previno; volaban halcones tapando el sol; el bombardeo sorpresivo, traicionero, levantó la rabia del tigre; con rugidos imposibles balaceaba a los helicópteros "black hawk". Colaboramos con esa rabia y nueve dejaron de volar.


Um símbolo interessante utilizado nessa passagem é o de falcões tapando o Sol, como se fosse uma espécie de aviso, ou presságio, mas também remete aos modelos dos helicópteros utilizados no ataque (Black Hawk) e pode ser visto com a imagem de dezenas de helicópteros sobrevoando o acampamento, fazendo sombra. O tigre, com sua fúria, pode significar a força da guerrilha que estava adormecida (já que se tratava de um período de cessar-fogo entre ambas as partes) e sua reação contra um ataque considerado covarde, ou mesmo a incompreensão e revolta da natureza com tal ofensiva. Colocar as forças da natureza ao seu favor é também uma maneira de se convencer a população de que o lado mais justo é o da guerrilha, visto que o governo estaria cedendo aos interesses de um inimigo externo:


Seis mil militares avanzaban con la tarea de borrar Casa Verde. Habían cambiado de idioma: sus patrones ordenaban: "Kill, fucking bastards, kill". Una bala de Susana terminó con la voz nacida en Texas. -¿A qué vienen aquí?- se preguntó un pájaro.


Essa passagem, muito interessante, denuncia o envolvimento dos Estados Unidos em financiar o governo colombiano na sua luta contra as guerrilhas, assim como a maior presença de oficiais norte-americanos nos postos de comando do exército colombiano. A crítica que se faz é a de um exército que muda seus patrões, ou seja, obedece a ordens de outro país, criticando o que seria uma perda de soberania por parte do governo colombiano, entregando o controle do país a um inimigo. O trecho tem como contexto o estabelecimento do Plano Colômbia, um acordo em que os Estados Unidos liberaria verbas para a luta contra o narcotráfico na Colômbia, mas o dinheiro (e inclusive ajuda militar, como já foi dito) estava sendo empregado para eliminar os focos guerrilheiros, visto pelo governo como um mal maior do que os cartéis de droga. Outro fator importante é a presença de mulheres defendendo o local, e a incompreensão de um dos guerrilheiros com o ataque, mais uma vez trazendo a imagem de um ataque infundado. Vale notar também a imagem de tranqüilidade dada ao local antes do ataque e a incompreensão das pessoas que ali estavam, representados por pássaros, ao que estava ocorrendo.

É interessante lembrar que a denominação pájaros era dada a grupos paramilitares nas décadas de 60 e 70 (por se constituir em bandos), tornando-se sinônimo de guerrilheiros somente nas décadas seguintes, quando os paramilitares passaram a ser denominados por eles de galináceos (gallinazos). Tal diferenciação pode ser interpretada no sentido de que o pássaro (o guerrilheiro) torna-se símbolo de liberdade, voando mais alto, vendo o mundo de uma maneira mais ampla, global e “verdadeira”, e os galináceos (paramilitares) como aves condicionadas, que não voam alto, portanto têm uma visão mais parcial do mundo, seguindo as ordens de seus patrões sem contestar ou pensar sobre o que estariam fazendo.

O último parágrafo também dá ênfase à idéia de que os guerrilheiros estariam lutando pelo bem do país e mesmo a morte de seu Comandante não cessaria seu trabalho e luta: “Casa Verde es Colombia. ¿Quién puede matar ese corazón?- Y puedo jurar que vi la sonrisa del Comandante Jacobo Arenas.” Tal trecho parece passar a idéia de que Arenas, se estivesse vivo, aprovaria e se orgulharia da resistência do grupo, além da simbologia da palavra coração, lembrando a perda do líder por ataque cardíaco e ressaltando a idéia de um sentimento mais forte pelo país, colocando a agressão à Casa Verde como uma agressão a todo o povo e seus ideais.

Um outro exemplo da produção guerrilheira é um poema escrito por Aurélio Arturo no início do movimento guerrilheiro (1961) intitulado Morada al Sur, tentando resgatar uma imagem de certa forma mais romântica do guerrilheiro, aquele se sobe a montanha, como uma pessoa sonhadora que luta pela justiça e liberdade: “Yo subí a las montañas, también hechas de sueños / yo ascendí, yo subí a las montañas donde un grito / persiste entre las alas de palomas salvajes”. Tal poema tenta mostrar a idéia de que a guerrilha procura realizar um sonho para toda a população, uma nova realidade em que a violência e assassinatos não existam mais, e que os governantes dirijam o país conforme as necessidades da sua população. Esse tal grito, que persiste nas asas de pombas selvagens pode ser entendido como a insatisfação com a situação atual do país, um pedido de mudança. Tal idéia também pode ser vista em um poema chamado Colombia Entera, assinado por Fernando Orti: “Grita Colômbia entera/ Por um futuro humano/ Que acabe el genocídio/ De todos tus hermanos”, mostrando que o povo deve se mobilizar para mudar a realidade: “Y así comiecen a brillar/ De nuevo sus colores/ Los pájaros, las flores/ Borrar la realidad.” Nesse trecho, mais uma vez surge a analogia entre os pássaros e a guerrilha, como agentes que ajudariam a modificar e apagar a realidade violenta do país.

Muitos desses textos e poemas tem por finalidade mostrar o lado voluntarista do guerrilheiro, que tem consciência da situação caótica do país e luta para que esse quadro mude, tentando despertar esse mesmo sentimento na população que lê esses versos, chamando o povo para que não fique estático perante os abusos do governo e violência que essa população sofre por parte dos grupos paramilitares. Apagar a imagem do guerrilheiro violento e criminoso que os departamentos do governo e a mídia norte-americana tentam transmitir à população é também mais um dos objetivos presentes nesses textos, onde os guerrilheiros seriam pessoas como a aquelas que pretendem defender, que também sofrem, sonham, e que lutam por um país mais justo.

Tal artigo se constitui na realidade um ensaio, resultado de um trabalho ainda não concluído, que está sendo desenvolvido durante a especialização. Os textos e poemas aqui citados e outros utilizados na pesquisa podem ser encontrados na página eletrônica das FARC-EP no endereço www.farcep.org/cultura, e outros na versão on line do periódico do grupo, chamado Resistencia em ww.farcep.org/resistencia/internacional/.


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* Aluno da Especialização em História Social, Departamento de História, Universidade Estadual de Londrina.

e-mail: julio-hist@universia.com.br

Um comentário:

  1. Olá, parabéns pelo site... Gostaria apenas de acrescentar uma correção... o Plano Colombia é de 1999... por distração eu coloquei 1990.
    Agradeço por ter mantido minha autoria no artigo (muita gente não faz isso, como se o fruto de um trabalho tivesse brotado do nada). Mas a sugestão é de avisar os autores sobre as postagens... a página em que você pegou o texto também o publicou na internet sem minha autorização, mas tudo bem.
    Ah sim, o texto é de 2005.
    Obrigado e bom trabalho.

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Por que Zurdo?

O nome do blog foi inspirado no filme Zurdo de Carlos Salcés, uma película mexicana extraordinária.


Zurdo em espanhol que dizer: esquerda, mão esquerda.
E este blog significa uma postura alternativa as oficiais, as institucionais. Aqui postaremos diversos assuntos como política, cultura, história, filosofia, humor... relacionadas a realidades sem tergiversações como é costume na mídia tradicional.
Teremos uma postura radical diante dos fatos procurando estimular o pensamento crítico. Além da opinião, elabora-se a realidade desvendando os verdadeiros interesses que estão em disputa na sociedade.

Vos abraço com todo o fervor revolucionário

Raoul José Pinto



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