Texto do seminario "silêncio dos intelectuais"Intelectual engajado: uma figura em extinção(2005), por Marilena Chaui
o conhecimento não tem nenhuma luz senão a que brilha sobre o
mundo a partir da redenção. ( Adorno, Mínima Moralia).
I
Ao interpretar o projeto histórico moderno, Boaventura dos Santos considera queeste assentou-se sobre dois pilares: o da regulação e o da emancipação. Opilarda regulação, por sua vez, assentou-se sobre três princípios: o Estado (ou a soberania indivisa, que impõe a obrigação política vertical entre oscidadãos),o mercado (que impõe a obrigação política horizontal individualista eantagônica) e a comunidade (ou a obrigação política horizontal solidáriaentreseus membros). O pilar da emancipação, por seu turno, foi constituído portrêslógicas de autonomia racional: a racionalidade expressiva das artes, aracionalidade cognitiva e instrumental da ciência e técnica, e aracionalidadeprática da ética e do direito. O projeto da modernidade julgava possível odesenvolvimento harmonioso da regulação e da emancipação e a racionalizaçãocompleta da vida individual e coletiva. Todavia, o caráter abstrato dos princípios de cada um dos dois pilares levou cada um deles à tendência amaximizar-se com a exclusão do outro e a articulação entre o projetomoderno eo surgimento do capitalismo assegurou a vitória do pilar da regulaçãocontra oda emancipação.Mantendo a terminologia de Boaventura dos Santos, podemos dizer que opilar da emancipação ou a lógica da autonomia racional das artes, ciências, técnicas,ética e direito foi determinante para o surgimento da figura moderna dopensador e do artista não submetidos às instituições eclesiástica, estatal eacadêmico-universitária. A autonomia racional moderna das ações (artes,ética,direito e técnica) e do pensamento (ciências e filosofia) conferiu a seussujeitos algo mais do que a independência: conferiu-lhes autoridade teórica eprática para criticar as instituições religiosas, políticas e acadêmicas,comofizeram os philosophes da Ilustração Francesa, e, no século XIX, paracriticara economia, as relações sociais e os valores, como fizeram os socialistasutópicos, os anarquistas e os marxistas. O pilar da autonomia racional tornoupossível o surgimento daqueles que, durante o Caso Dreyfus, Zola convocou àcena pública com um nome novo: os intelectuais.Num ensaio de Pierre Bourdieu sobre o papel dos intelectuais no mundomoderno,lemos: Os intelectuais surgiram historicamente no e pelo ultrapassamento da oposiçãoentre a cultura pura e o engajamento, São por isso seres bi-dimensionais. Para invocar o título de intelectual, os produtores culturais precisam preencherduas condições: de um lado, pertencer a uma campo intelectualmente autônomo,independente do poder religioso, político, econômico e outros, e precisamrespeitar as leis particulares desse campo; de outro lado, precisammanifestarsua perícia e autoridade específicas numa atividade política exterior aocampoparticular de sua atividade intelectual. Precisam permanecer produtoresculturais em tempo integral sem se tornar políticos. Apesar da antinomiaentreautonomia e engajamento, é possível mantê-los simultaneamente. Quanto maior aindependência do intelectual com relação interesses mundanos, advinda de suamestria, tanto maior sua inclinação a asseverar essa independência,criticandoos poderes existentes e tanto maior a efetividade simbólica de qualquerposiçãopolítica que possam tomar. A fala pública e a ação pública dos intelectuais, justamente porque balizadaspela afirmação da autonomia, assumem dois traços principais: e a defesa decausas universais, isto é, distantes de interesses particulares, e atransgressão com referência à ordem vigente. Essas características dointelectual esclarecem porque, estudando a figura dos intelectuaisbrasileiros,Antônio Cândido desenvolve a tese instigante de que eles formam o ?partido docontra?.Acompanhando o percurso histórico dos intelectuais, Bourdieu fala em?situaçãoparadoxal? e em ?síntese difícil? da bi-dimensionalidade, pois osintelectuaisoscilam entre o recolhimento e o engajamento, o silêncio e a intervençãopública, oscilação que decorre das circunstâncias nas quais a demanda de autonomia racional é respeitada ou ameaçada pelos poderes instituídos. Nada melhor para ilustrar a síntese difícil entre o recolhimento e oengajamentodo que as divergências entre Sartre e Merleau-Ponty sobre a figura dointelectual engajado, surgida na França após a Segunda Guerra, e cuja formavisível foi a criação, pelos dois filósofos, de uma revista de intervençãopolítica e cultural, Les Temps Modernes. A divergência entre ambos ocorre em1953, por ocasião da defesa do Partido Comunista Francês por Sartre, que atéentão fora anticomunista.Em 28 de abril de 1953, o PCF convocou os operários franceses para umamanifestação contra a guerra da Coréia e, para 4 de maio, convocou uma grevegeral de repúdio à prisão do secretário geral do partido, Jacques Duclos,ocorrida durante a manifestação de abril. Nas duas ocasiões, os operários nãoresponderam em massa à convocação.Sartre, até então anticomunista, publica em Les Temps Modernes o primeiroartigoda série Os Comunistas e a Paz, contra a prisão de Duclos, o anticomunismoe afraca resposta operária ao chamamento do PCF. Com relação ao anticomunismo,declara que, quando atacado, um partido comunista deve ser incondicionalmentedefendido por todas as esquerdas. Com respeito à fraca resposta do operariadofrancês ao PCF, Sartre parte da afirmação de Marx, no Manifesto Comunista, danecessidade do proletariado organizar-se num partido revolucionário e concluique, sendo o Partido Comunista tal partido, sem ele os operários nãoexistirãocomo classe, mas apenas como massa passiva e alienada. Merleau-Ponty reage e recusa a posição de Sartre, publicando na revista umartigo sobre a relação entre filosofia e política, propondo abrir o debatesobre a crise atual da idéia de revolução porque substituiu-se a idéia deMarxdo desenvolvimento da consciência de classe pela idéia bolchevique de?interesses do partido?. Na opinião de Merleau-Ponty, Sartre, à maneirabolchevique, identifica a história do proletariado com a ação dos partidoscomunistas, esquecendo a longa e difícil história dos movimentos operáriosparaficar com a auto-imagem revolucionária de uma burocracia partidária, que secoloca como representante exclusiva da classe. Merleau-Ponty enfatiza adiferença entre Marx e os PCs: enquanto o primeiro exigia uma práxistecida nasmediações entre a subjetividade proletária e a objetividade da condiçõesmateriais históricas, os segundos praticam, a partir do bolchevismo, uma açãoidentificadora entre ambas, sem mediações.A questão, atada à figura do intelectual engajado, colocava um dos temasfundamentais que Sartre e Merleau-Ponty desenvolveram em suas obras: o darelação entre filosofia e política. Sob o impacto do marxismo e da revoluçãoproletária, ambos conceberam a filosofia como recusa de um pensamentoseparadodo mundo tal como era realizada pela filosofia universitária francesa,espiritualista e idealista; mas também a conceberam como crítica da filosofiada história feita pelo Partido Comunista Francês, esclerosada pela cisãoentreuma teoria idealista e uma práxis empirista, solidária com stalinismo e com avisão burocrática do pensamento e da ação. Nas Questões de Método, Sartre escreve:Havíamos sido educados no humanismo burguês e esse humanismo otimista seesfacelava porque adivinhávamos, nos arredores de nossa cidade, a imensamassade ?sub-homens conscientes de sua sub-humanidade, mas ainda sentíamos oesfacelamento de maneira idealista e individualista: os autores que amávamos,naquela época, nos diziam que a existência é um escândalo. Todavia, o que nosinteressava eram os homens reais, com seus trabalhos e suas penas; exigíamosuma filosofia que desse conta de tudo sem nos apercebermos de que ela jáexistia e que era ela, justamente, que procurava em nós essa exigência.4De modo semelhante, em ?A guerra aconteceu?, Merleau-Ponty descreve oesfacelamente do otimismo humanista universitário e da boa-consciênciafrancesa, sob os efeitos da guerra, que trouxe a evidência bruta eirrecusáveldo peso da história, da opacidade das relações sociais por que estas não sãorelações imediatas entre consciências, mas relações mediatizadas pelascoisas epelas instituições. Os franceses foram surpreendidos com a guerra, noverão de1939, por que ?não nos guiávamos pelos fatos? e ?havíamos secretamentedecididoignorar a violência e a infelicidade como elementos da história?. Nauniversidade, professores ensinavam que guerras nascem de mal-entendidos quepodem ser dissipados ou de acasos que podem ser conjurados pela paciência epela coragem. Por seu turno, os intelectuais do Partido Comunista Francês,certos de possuírem o segredo da história e da luta de classes,consideraram onazi-fascismo uma crise do capitalismo e a guerra apenas uma aparência quenãotocaria na solidariedade internacional do proletariado, em suma,elaboraram umaideologia da guerra e da luta de classes que lhes permitia, pela aplicaçãomecânica da relação capital-trabalho, evitar uma análise materialista ehistórica da guerra e da luta de classes. A tese nuclear da primeira obra filosófica de Sartre ? O Ser e o Nada ? é adiferença de essência entre o mundo das coisas ? o Ser ? e a consciência ? oNada. O Ser é resistente, opaco e viscoso; é o em-si, a objetividade nua ebruta. O Nada é a consciência que, ao contrário, é insubstancial, puraatividade e espontaneidade; é o para-si, a subjetividade plena. Para ela, osoutros, embora presumidos como humanos, são mundo, portanto, seres ou coisas.Donde a célebre expressão de Entre Quatro Paredes: ?o inferno são os outros?,pois cada um deles, enquanto consciência ou sujeito, reduz os demais àcondiçãode mera coisa e é reduzido pelos outros à condição de coisa. Emborasituada nomundo, a consciência, por ser nada, não é condicionada por ele, nãopodendo serdeterminada pelas coisas nem pelos fatos e, pelo contrário, tem o poder denadificá-los, fazendo-os existir como idéias, imagens, sentimentos e ações? aconsciência, sem amarras, é liberdade pura. Donde a conhecida fórmulasartreana: ?estamos condenados à liberdade?. Para Sartre, a liberdade dásentido ao engajamento.10Para Merleau-Ponty, desde suas primeiras obras, o Nada sartreano é a nova versão idealista e intelectualista da consciência de si reflexiva, portanto,soberana,fundadora, constituídora do sentido do Ser. Ao contrário, a filosofiamerleaupontyana acentua o mundo pré-reflexivo no qual vivemos e de ondeemergimos como intercorporeidade e intersubjetividade, portanto, atados aotecido do mundo e aos outros, sem o poder para constitui-los. A filosofia de Merleau-Ponty, ergue-se contra o intelectualismo, isto é, a suposição dasoberania da consciência como doadora de sentido e fundadora do mundoenquantosignificação. Contra a herança intelectualista, Merleau-Ponty afirma aencarnação da consciência num corpo cognoscente e reflexionante, dotado deinterioridade e de sentido, relacionando-se com as coisas como corpossensíveis, também dotados de interioridade e de sentido, e com os outros, osquais não são coisas nem partes da paisagem, mas nossos semelhantes. Se aconsciência não é pura espontaneidade desencarnada e soberana, compreende-seque a liberdade, na formulação merleau-pontyana, seja ?o poder paratranscendera situação de fato, que não escolhemos, dando-lhe um sentido novo?. Ofilósofonão pode, de modo algum, separar-se e afastar-se do mundo, pois nãoestamos nomundo (como queria Sartre ao falar em situação), mas somos do e com o mundo.Para Merleau-Ponty, o engajamento dá sentido à liberdade:Nenhum engajamento pode fazer-me ultrapassar todas as diferenças e tornar-selivre para tudo (...). Sou uma estrutura psicológica e histórica. (...).Todasas minhas ações e meus pensamentos estão em relação com essa estrutura e atémesmo o pensamento de um filósofo nada mais é do que uma maneira deexplicitarsua pegada sobre o mundo. E, no entanto, sou livre. Não a despeito ou aquémdessas motivações, mas por meio delas (...). Essa vida significante, essacertasignificação da natureza e da história que sou não limitam meu acesso aomundo;pelo contrário, são meu meio de comunicar-me com ele.11Quais as conseqüências políticas dessas duas concepções divergentes dafilosofia? Para Sartre, visto que a consciência é leve e insubstancial, ofilósofo pode aceitar o apelo de todos os fatos e de todos os acontecimentos,não se deixando impregnar por eles, conservando a soberania. ParaMerleau-Ponty, porque a consciência é encarnada num corpo e situada naintercorporeidade e na intersubjetividade, o filósofo não pode, parausarmos aexpressão que emprega no Elogio da Filosofia ?dar o assentimento imediato edireto a todas as coisas, sem considerandos?. Isso significa, comoescreve, que é preciso ser capaz de tomar distância para ser capaz de um engajamentoverdadeiro, o qual é sempre também um engajamento na verdade?.Sartre, porém, afirma que Merleau-Ponty possui uma concepção da filosofiaque sóaparentemente permitiria conciliá-la com a política, e que, realmente,ambas sãoinconciliáveis. A política, escreve ele, é ação fundada numa escolhaobjetiva, apartir dos dados e fatos disponíveis. Se a filosofia for, como pretendeMerleau-Ponty, a exigência de, antes de escolher, colocar-se numdistanciamentoque permita apreender totalidades parciais e não os fatos isolados que formamnossa experiência quotidiana, então, escreve Sartre, ?um filósofo de hoje nãopode tomar uma atitude política?.Que pretende Merleau-Ponty em julho de 1953? ?Que é preciso saber o que é oregime soviético para escolher? a favor ou contra. Ora, retruca Sartre, essaexigência, que parece ser meramente empírica ? isto é, a necessidade depossuirmais dados ?, é, na realidade, uma dificuldade de princípio, pois nuncapossuímos um saber total sobre as condições históricas. Escolhemos sempre sempleno conhecimento e, sobretudo, não podemos invocar a reflexão filosóficaquando somos chamados a reagir ao que é urgente. A concepção merleau-pontyanaestá equivocada. Com ela, renuncia-se à política. Não renunciei à política, retruca Merleau-Ponty, apenas recusei-me a conceber o engajamento nos mesmostermos em que Sartre o concebe.Como Sartre concebe o engajamento? O intelectual engajado é o escritor deatualidades que opina e intervém em todos os acontecimentos relevantes, àmedida que vão se sucedendo uns aos outros. É um estado de vigíliapermanente.Merleau-Ponty recusa esse tipo engajamento por dois motivos. O primeiro éo deque, ao escrever em conta-gotas sobre cada acontecimento, o escritor induz oleitor a aceitar fatos isolados que recusaria se pudesse ter uma visão maisabrangente, ou, ao contrário, o induz a recusar como odiosos fatos isoladosque, se percebesse de maneira mais abrangente, aceitaria. Essa vigíliaengajadaé, afinal, má-fé. Não informa, não analisa, não reflete, corre e muda aosabordos eventos, de tal modo que se fosse dado ao leitor, um dia, reunir oconjuntode manifestos e pequenos artigos diários ou mensais de um intelectualengajadoou de um comentarista político perceberia a incoerência, a leviandade, airresponsabilidade daquele que escreve. O segundo motivo é, à primeira vista,paradoxal. Com efeito, tendo apresentado o primeiro, seria de supor-se queMerleau-Ponty houvesse atacado Sartre por agir às cegas, manifestando-se emtoda parte sobre todos os acontecimentos sem jamais possuir um conhecimentoaproximado do todo ou, pelo menos, das linhas de força e vetores dos eventos,não lhes alcançando a significação. Ora, dá-se exatamente o contrário. É que,graças à soberania da consciência sobre o ser, Sartre construiu, empensamentoe em imaginação, um futuro fixo, mantido em segredo, que regulaclandestinamente o curso dos acontecimentos, Aconteça o que acontecer, Sartrepossui o futuro e a história em pensamento e em imaginação, sendo-lhe fácilopinar sobre tudo e tomar posição em tudo. Em outras palavras, osacontecimentos são tidos como a superfície de um sentido secreto conhecidoapenas pelo filósofo, que por isso, soberanamente, opina politicamente.Espectador absoluto, soberano e transcendente, o filósofo julga ter achave dotempo, da história e do mundo. Sob a aparente modéstia daquele que, disseraSartre, sabe que a condição humana é a da escolha na ambigüidade, àscegas, naignorância do todo, esconde-se presunção de ser Espírito Absoluto. Se ofilósofo julga poder dizer não importa o quê a cada dia é por julgar-se naposse do sentido total da história. Sua irresponsabilidade cotidiana tem comopressuposto uma história completa (já realizada em pensamento), queapagará damemória os passos empíricos por ela realizados por que os absorve num sentidoúnico que os tornará irrelevantes quando a pena de tê-los feito tambémhouver-se tornado irrelevante. Por isso mesmo, em julho de 1953, Sartre podiaescrever que ?todo anticomunista é uma criatura desprezível, nada me farámudarde opinião?, mas, três anos depois, sob o impacto da invasão soviética deBudapeste, não hesitou em escrever: ?jamais será possível reatar relações comas atuais dirigentes do PCF (...) resultado de trinta anos de mentiras eesclerose (...). Hoje, volto à oposição?.Com Sartre e Merleau-Ponty, duas concepções da filosofia e do engajamentointelectual estão em choque. Estamos perante a oposição entre a concepção dafilosofia como consciência soberana clandestina, que manobra as posições eopiniões políticas (sabendo, de antemão, que não são decisivas nemimportantespor que o curso da história se realiza secretamente com ou sem elas) e aquelaque percebe a consciência mergulhada no mundo, fazendo-se na relação comele eque, portanto, não dispõe da chave da história e da política. A histórianão éuma lógica da necessidade absoluta, nem a política, a álgebra da história: orevolucionário, escreve Merleau-Ponty nas Aventuras da Dialética, navega semmapas. Por isso mesmo, cada ato, cada gesto, cada palavra, cada pensamentocontam na determinação do curso da história e da política, pois está sobnossaresponsabilidade compreender as mediações subjetivas e objetivas queorientarãoo rumo dos acontecimentos. Manifestar-se sobre tudo, assumir posição e teropinião sobre tudo, mudar de atitude conforme mudem os ventos, abandonar aobrajá escrita, desdizendo-a e desdizendo-se, é irresponsabilidade, não éliberdade.Isso significa que, muitas vezes, o verdadeiro engajamento exige quefiquemos emsilêncio e que não cedamos às exigências cegas da sociedade. As relações dofilósofo com a Cidade são difíceis, diz Merleau-Ponty, porque ela lhe pedeexatamente o que ele não lhe pode dar: o assentimento imediato, sem maioresconsiderações.As divergências entre Sartre e Merleau-Ponty nos colocam diante dosimpasses edas aporias da autonomia racional. A defesa da autonomia racional por MP évista por Sartre como álibi para que uma filosofia impotente aceite umengajamento fraco. A suspensão provisória da autonomia racional por Sartre évista por MP como álibi para o uso instrumental do engajamento por umafilosofia onipotente.II.Sob o poder do modo de produção capitalista, fracassa o projeto moderno deharmonia entre o pilar da regulação e o da emancipação (para continuarmos ausar a terminologia de Boaventura dos Santos). A vitória do pilar daregulaçãosobre o da emancipação conferiu hegemonia à identidade entre a ordemvigente ea racionalidade, esta não mais autônoma e sim repressiva e instrumental, parausarmos a expressão cunhada pela Escola de Frankfurt.Uma vez que o fracasso do projeto moderno decorre da forma de inserção daracionalidade no modo de produção capitalista, torna-se indispensávelpensar aautonomia racional em outra chave. Lembremos que a vitória da regulaçãosobre aemancipação ? ou da ordem sobre a transformação -- recebeu, com Marx, um nomepreciso: chama-se ideologia burguesa. Em outras palavras, a autonomiaracionaldas artes, ciências, técnicas, filosofia, ética e direito não poderia escaparde ser determinada pela forma histórica da divisão social das classes, com aseparação entre trabalho manual e trabalho intelectual no modo de produçãocapitalista. Essa separação levou ao ocultamento da determinação material daracionalidade, invertendo a relação real entre a materialidadesócio-econômicae o espírito e, por isso mesmo, conferiu a este último o poder de produzir oreal e a marcha da história. A independência conquistada a duras penas pelaracionalidade moderna transformou-se num fantasma poderoso, a crença deque oasidéias determinam o movimento da história ou são o motor da história.Ocultandoa determinação histórica do saber, a divisão social das classes, a exploraçãoeconômica e a dominação política, as idéias se tornaram representaçõesabstratas, imagens que a classe dominante possui de si mesma e que seestendempara todas as classes sociais e para todas as épocas. Numa palavra, aideologiaintegra a lógica da luta de classes em favor da classe dominante. Issosignifica, como explicou Gramsci, que a classe dominante possui ?intelectuaisorgânicos?, mas significa também que a autonomia racional das artes e dopensamento, entendida como autonomia dos intelectuais e de sua intervençãopública, só pode ser afirmada se for balizada pela tomada de posição nointerior da luta de classes contra os dominantes e na redefinição dosuniversais, compreendendo-os como universais concretos.Essa tomada de posição é exatamente o que a noção de engajamento ou dointelectual como figura que intervém criticamente na esfera pública procuraexprimir, trazendo consigo não só a transgressão da ordem (como afirmaBourdieu) e a crítica do existente (como pretende a Escola de Frankfurt), mastambém a crítica da forma e do conteúdo da própria atividade das artes,ciências, técnicas, filosofia e direito. Com a noção de engajamento comotomadade posição no interior da luta de classes contra a forma de exploração edominação vigentes em nome da emancipação ou da autonomia em todas esferas davida econômica, social, política e cultural, podemos diferenciar ointelectuale o ideólogo. Este fala a favor da ordem vigente, justificando-a elegitimando-a. Aquele fala contra. Donde o problema que espreita osintelectuais quando se engajam nos partidos políticos de esquerda, isto é, ospartidos do contra, quando esses deslizam para a condição de partidos daordem.III.Se a diferença entre o intelectual e artistas, cientistas, técnicos,filósofos,juristas encontra-se no fato de que o primeiro é o artista ou o cientista, otécnico, o filósofo, o jurista quando intervêm criticamente no espaçopúblico,falando em público, então a expressão ?o silêncio dos intelectuais? pareceriacontraditória. Quando em silêncio, um artista ou um pensador deixam de serintelectuais. Mas se há silêncio, convém indagar quais poderiam ser suascausas. Delas falarão os demais conferencistas. Aqui, nos limitaremos aindicarapenas aquelas que nos parecem mais relevantes para examinar o retraimentoatualda figura do intelectual engajado.A primeira dessas causas, certamente, é o ?amargo abandono das utopiasrevolucionárias (...) a rejeição da política (...) e um ceticismodesencantado?, sob os efeitos do totalitarismo nos países ditos comunistas, do fracasso daglasnost na União Soviética e do recuo da social-democracia, com a adoção dachamada ?terceira via? ou do ?capitalismo acrescido de valores socialistas?,como diz o Partido Trabalhista Inglês. Assim, desaparece o horizontehistóricodo futuro, o presente se fecha sobre si mesmo, a ordem vigente apareceauto-legitimada e justificada porque nada parece contradize-la nem a ela seopor, e os ideólogos podem comprazer-se falando do ?fim da história? ou eafirmando o capitalismo como destino final da humanidade. O retraimento doengajamento ou o silêncio dos intelectuais é, aqui, signo de uma ausênciamaisprofunda: a ausência de um pensamento capaz de desvendar e interpretar ascontradições que movem o presente. Não se trata de uma recusa de proferir umdiscurso público e sim da impossibilidade de formulá-lo.A segunda causa, é o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaçoprivado sob os imperativos da nova forma de acumulação do capital, conhecidacomo neoliberalismo. Um dos efeitos dessa situação é a transformação dedireitos econômicos e sociais em serviços definidos pela lógica de mercadoe atransformação do cidadão em consumidor. Ora a democracia institui a cidadaniacomo ação de contra-poderes sociais para a criação e garantia de direitos,graças à participação nas lutas políticas. Se os direitos, conquistados nosembates do espaço público e na luta de classes, são privatizados ao setransformar em serviços vendidos e comprados como mercadorias, o cerne dademocracia é ferido mortalmente e a despolitização da sociedade é umadecorrência necessária. O recuo da cidadania e a despolitização produzem asubstituição do intelectual engajado pela figura do especialista competentecujo suposto saber lhe confere o poder para, em todas as esferas da vidasocial, dizer aos demais o que devem pensar, sentir, fazer e esperar. Acríticaao existente é silenciada pela proliferação ideológica dos receituários paraviver bem.A terceira causa, é a nova forma de inserção do saber e da tecnologia nomodo deprodução capitalista: tornaram-se forças produtivas, deixando de ser merosuporte do capital para se converter em agentes de sua acumulação.Consequentemente, mudou o modo de inserção dos pensadores e técnicos nasociedade por que se tornaram agentes econômicos diretos, e a força e o podercapitalistas encontram-se, hoje, no monopólio dos conhecimentos e dainformação.Surge a expressão ?sociedade do conhecimento? para indicar que a economiacontemporânea se funda sobre as ciência e a informação, graças ao usocompetitivo do conhecimento, da inovação tecnológica e da informação nosprocessos produtivos. Chega-se mesmo a falar em ?capital intelectual?,considerado por muitos como o principal princípio ativo das empresas.Afirma-se que, hoje, o conhecimento não se define mais por disciplinasespecíficas e sim por problemas e por sua aplicação nos setoresempresariais. Apesquisa é pensada como uma estratégia de intervenção e de controle demeios ouinstrumentos para a consecução de um objetivo delimitado. Em outraspalavras, éum survey de problemas, dificuldades e obstáculos para a realização doobjetivo,e um cálculo de meios para soluções parciais e locais para problemas eobstáculos locais. Emprega intensamente redes eletrônicas para se produzire setransformar em tecnologia e submete-se a controles de qualidade segundo osquaisdeve mostrar sua pertinência social mostrando sua eficácia econômica.Fala-se em?explosão do conhecimento? para indicar o aumento vertiginoso dos saberesquando, na realidade, indica o modo da determinação econômica doconhecimento,pois no jogo estratégico da competição no mercado, uma organização depesquisase mantém e se firma se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades,obstáculos sempre novos. O conhecimento contemporâneo se caracteriza pelocrescimento acelerado e pela tendência a uma rápida obsolescência.Nesse novo contexto, como falar em autonomia racional? Se as artes já haviamsido devoradas pela indústria cultural, agora são as ciências e astécnicas quese encontram submetidas à lógica empresarial. Não só a pesquisa setransformouem survey, e posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa,mastambém depende diretamente dos investimentos empresariais, os quais sãodeterminados pelo jogo estratégico da competição no mercado, de maneiraque ospesquisadores são mantidos e se firmam se forem capazes de propor áreas deproblemas, dificuldades, obstáculos sempre novos, o que é feito pelafragmentação de antigos problemas em novíssimos micro-problemas, sobre osquaiso controle parece ser cada vez maior. Os produtores de conhecimentos etecnologias absorvem a lógica da competição empresarial e dão a ela suaadesão,negando, portanto, a autonomia racional que dava autoridade à intervençãocrítica dos intelectuais.Esse fenômeno não atinge apenas as chamadas ciências duras e as ciênciasaplicadas, mas também as ciências humanas. Se até há pouco, economistas,cientistas sociais e psicólogos entravam nas empresas pela porta do DRH, nacondição de assalariados, hoje, são estimulados a se tornar capitalistas,criando empresas de consultoria e de assessoria para grandes empresas einstituições públicas. Até os filósofos se tornaram proprietários demicro-empresas de assessoria ética para as grandes corporações enquantooutrosbuscam a inserção no mercado como ?filósofos clínicos?!Além da dependência das universidades e dos centros de pesquisa em relação aopoder econômico, é preciso lembrar que esse poder se baseia na propriedadeprivada dos conhecimentos e das informações, de sorte que estes se tornamsecretos e constituem um campo de competição econômica e militar semprecedentes. Em outras palavras, uma vez que o saber dos especialistas é o?capital intelectual? das empresas e que o jogo estratégico da competiçãoeconômica e militar impõe, de um lado, o segredo e, de outro, a aceleração eobsolescência vertiginosas dos conhecimentos, tanto a produção quanto acirculação das informações estão submetidas a imperativos que escapam docontrole dos produtores do saber e do controle social e político doscidadãos.Ao contrário, o social e o político são controlados por um saber ou umacompetência cujo sentido lhes escapa inteiramente. Isso significa que nãosó aeconomia, mas também a política é considerada assunto de especialistas eque asdecisões parecem ser de natureza técnica, via de regra secretas ou, quandopublicadas, o são em linguagem perfeitamente incompreensível para amaioria doscidadãos.A autonomia racional era a independência com que a racionalidade científicadefinia seus objetos, métodos, resultados e aplicação, segundo critériosimanentes ao próprio conhecimento e à distância dos interessesparticulares. Anova situação do saber como força produtiva determina a heteronomia doconhecimento e da técnica, que passam a ser determinados por imperativosexteriores ao saber, bem como a heteronomia dos cientistas e técnicos, cujaspesquisas dependem do investimento empresarial. Ora, a autonomia racionalera acondição tanto da qualidade do saber como da autoridade do intelectualengajadopara transgredir a ordem vigente. Perdida a autonomia, que resta senão osilêncio?
IV.
Se os intelectuais estão em silêncio, em contrapartida, os ideólogos estãocadavez mais tagarelas. Sua tagarelice recebeu o nome de pós-modernismo --definidopor Frederic Jameson como ?lógica cultural do capitalismo tardio?.Em sua forma contemporânea, a sociedade capitalista se caracteriza pelafragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação daprodução, da dispersão espacial e temporal do trabalho, do desempregoestrutural e da destruição dos referenciais que balizavam a identidade declasse e as formas da luta de classes. A sociedade aparece como uma redemóvel,instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégiasparticulares e programas particulares, competindo entre si. Aparece como?meioambiente? perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido, programado,planejado e controlado por estratégias de intervenção tecnológica e jogos depoder .A materialidade econômica e social da nova forma do capital é inseparávelde umatransformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo,designada porDavid Harvey como a ?compressão espaço-temporal?, ou seja, o fato de que afragmentação e a globalização da produção econômica engendram dois fenômenoscontrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial etemporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias eletrônicas e deinformação, a compressão do espaço ? tudo se passa aqui, sem distâncias,diferenças nem fronteiras ? e a compressão do tempo ? tudo se passa agora,sempassado e sem futuro. Na verdade, fragmentação e dispersão do espaço e dotempocondicionam sua reunificação sob um espaço indiferenciado e um tempoefêmero, ousob um espaço que se reduz a uma superfície plana de imagens e sob umtempo queperdeu a profundidade e se reduz ao movimento de imagens velozes e fugazes.A naturalização e valorização positiva da fragmentação e dispersãosócio-econômica estimulam o individualismo agressivo e a busca do sucesso aqualquer preço, ao mesmo tempo em que dão lugar a uma forma de vidadeterminadapela insegurança e pela violência, institucionalizadas pela volatilidade domercado. Insegurança e medo levam ao gosto pela intimidade, ao reforço deantigas instituições, sobretudo a família e o clã como refúgios contra ummundohostil, ao retorno das formas místicas e autoritárias ou fundamentalistas dereligião e à adesão à imagem da autoridade política forte ou despótica.Se, sob os imperativos da sociedade de consumo e do espetáculo, as artesforamsubmetidas à lógica da indústria cultural, agora, com aqueles imperativosacrescidos do fortalecimento da figura pessoal do governante, a política setorna indústria política. Por isso dá ao marketing a tarefa de vender aimagemdo político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor. Para obter aidentificação do consumidor com o produto, o marketing produz a imagem dopolítico enquanto pessoa privada: características corporais, preferênciassexuais, culinárias, literárias, esportivas, hábitos cotidianos, vida emfamília, bichos de estimação. A privatização das figuras do político e docidadão privatiza o espaço público. Por isso a avaliação ética dosgovernos nãopossui critérios próprios a uma ética pública e se torna avaliação dasvirtudese vícios dos governantes; e a corrupção é atribuída ao mau caráter dosdirigentes e não às instituições públicas.Do ponto de vista da experiência cognitiva contemporânea, Paul Virilio fala emacronia e atopia, ou a desaparição das unidades sensíveis do tempo e doespaçotopológico da percepção sob os efeitos da revolução eletrônica einformática. Aprofundidade do tempo e seu poder diferenciador desaparecem sob o poder doinstantâneo. Por seu turno, a profundidade de campo, que define o espaçotopológico, desaparece sob o poder de uma localidade sem lugar e dastecnologias de sobrevôo. Vivemos sob o signo da telepresença e dateleobservação, que impossibilitam diferenciar entre a aparência e osentido, ovirtual e o real, pois tudo nos é imediatamente dado sob a forma datransparência temporal e espacial das aparências, apresentadas comoevidências.Nossa experiência e nosso pensamento se efetuam na perigosa fratura entre osensível e o inteligível, a experiência do corpo como corpo próprio édesmentida pela experiência da ausência de distâncias e horizontes e somosconvidados a um pensamento sedentário e ao esquecimento.Nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota numpresente vivido como instante fugaz. Essa situação, longe de suscitar umainterrogação sobre o presente e o porvir, leva ao abandono de qualquerlaço como possível e ao elogio da contingência e de sua incerteza essencial. Ocontingente não é percebido como uma indeterminação que a ação humana podedeterminar, mas como o modo de ser dos homens, das coisas e dosacontecimentos.Há uma adesão à descontinuidade e à contingência bruta, pois, ao perdermos adiferenciação temporal, não só perdemos a profundidade do passado, mas tambémperdemos a profundidade do futuro como possibilidade inscrita na ação humanaenquanto poder para determinar o indeterminado e para ultrapassar situaçõesdadas, compreendendo e transformando o sentido delas.A essa nova forma da experiência corresponde a formulação ideológica dopós-modernismo, comemoração entusiasmada da dispersão e fragmentação doespaçoe do tempo, da impossibilidade de distinguir entre aparência e sentido,imageme realidade. Em outras palavras, essa ideologia toma a fragmentaçãoeconômica esocial como um dado positivo e último; toma a ausência de sentido temporalcomoelogio da contingência e do acaso.Em 1979, Jean-François Lyotard , examinando a mutação conceitual dasciências daNatureza, estendia a mudança às ciências sociais e à filosofia econtrapunha opensamento moderno (o pensamento que vai do século XVII aos anos 1970 doséculoXX) a essas transformações que constituem o que ele designou como a condiçãopós-moderna. Afirmou, então, que a sociedade não é uma realidade orgânica nemum campo de conflitos e sim uma rede de comunicações lingüísticas, umalinguagem composta de por uma multiplicidade de diferentes jogos cuja regrassão incomensuráveis, cada jogo entrando em competição ou numa relaçãoagonística com os outros. Ciência, política, filosofia, artes são jogos delinguagem, ?narrativas? em disputa, nenhuma delas denotativa, isto é, nenhumadelas referida às coisas mesmas, à realidade.Por isso, o pós-modernismo comemora o que designa de ?fim dameta-narrativa?, ouseja, os fundamentos do conhecimento moderno, relegando à condição de mitoseurocêntricos totalitários os conceitos que fundaram e orientaram amodernidade: as idéias de verdade, racionalidade, universalidade, ocontrapontoentre necessidade e contingência, os problemas da relação entresubjetividade eobjetividade, a história como dotada de sentido imanente, a diferença entreNatureza e Cultura, etc. Em seu lugar, o pós-modernismo afirma a fragmentaçãocomo modo de ser do real fazendo das idéias de diferença (contra aidentidade ea contradição), singularidade (contra a de totalidade) e nomadismo (contra adeterminação necessária) o núcleo provedor de sentido da realidade; preza asuperfície do aparecer social ou as imagens e sua velocidade espaço-temporal;recusa que a linguagem tenha sentido e interioridade.A ideologia pós-moderna, sob a ação das tecnologias virtuais, faz o elogio dosimulacro cuja peculiaridade, na sociedade contemporânea, encontra-se no fatode que por trás dele não haveria alguma coisa que ele simularia oudissimularia, mas apenas outra imagem, outro simulacro. Suscita o gosto e apaixão pelo efêmero e pelas imagens, em consonância com a mudança sofrida nosetor da circulação das mercadorias e do consumo, no qual prevalece um tiponovo de publicidade e marketing em que não se vendem e compram mercadorias ou?coisas?, mas o simulacro delas, isto é, vendem-se e compram-se imagens (desaúde, beleza, juventude, sucesso, bem-estar, segurança, felicidade) que, porserem efêmeras, precisam ser substituídas rapidamente.Do ponto de vista da política, a concepção pós-moderna, identificaracionalismo,capitalismo e socialismo: a razão moderna é exercício de poder ou o idealmoderno do saber como dominação da natureza e da sociedade; o capitalismo é arealização desse ideal por meio do mercado; e o socialismo o realiza por meioda economia planejada. Trata-se, portanto, de combater o racionalismo, ocapitalismo e o socialismo seja desvendando e combatendo a rede demicro-poderes que normalizam ou normatizam capilarmente toda a sociedade ,sejaerguendo-se contra a territorialidade das identidades orgânicas que sufocam onomadismo das singularidades , seja, enfim, combatendo os investimentoslibidinais impostos pelo capitalismo e pelo socialismo, isto é, mudando oconteúdo, a forma e a direção do desejo . A ?política? pós-moderna opera,assim, três grandes inversões: substitui a lógica da produção pela dacirculação (os micro-poderes e o nomadismo das singularidades) e por issosubstitui a lógica do trabalho pela da informação (a realidade comonarrativa ejogos de linguagem) e, como conseqüência, substitui a luta de classes pelasatisfação-insatisfação do desejo.Diante disso, não é surpreendente a atual fascinação das esquerdaspós-modernaspelas idéias políticas de um ideólogo como Carl Schmitt, particularmente pelo?decisionismo? ou sua concepção da soberania como poder de decisão exnihilo emsituações de exceção (isto é, de guerra e de crise). Uma decisão soberana éincondicionada, ou seja, não depende de qualquer condição (econômica, social,jurídica, cultural, histórica) e não se submete a nenhuma condição. Porconseguinte, é instantânea, despojada de qualquer lastro temporal ? é uminícioabsoluto, sem vínculo com um passado e sem prolongamento num futuro.Também o gosto pós-moderno pelas singularidades nômades oudesterritorializadasencontra eco nesse ideólogo, para quem a esfera política é autônoma, isto é,não é determinada pela economia, pela ética nem pelo direito, e se definepelaoposição amigo-inimigo. Politicamente, amigo é o que compartilha nossomodo devida, inimigo, o outro, ?o estrangeiro? que ameaça nosso modo de vida e, comisso, nossa existência. A política não é senão o movimento que reúne e agregaos semelhantes ? os amigos ? para que entrem numa relação de força com oinimigo, isto é, o outro. Visto que não há uma determinação econômica, socialou histórica dos amigos e inimigos, esses agrupamentos são móveis, instáveis,nômades, variando conforme as circunstâncias. Sob essa perspectiva, amodernidade é a catástrofe, em primeiro lugar, porque ao introduzir aidéia deEstado de Direito dá anterioridade jurídica ao político e o identifica aoEstado; em segundo, porque destrói o núcleo definidor da soberania, aoproibirque o soberano intervenha na ordem jurídica; em terceiro, porque institui aunião do individualismo igualitário e apolítico do liberalismo econômicocom ademocracia, a qual, entretanto fica desfigurada, pois realmente admiteapenas aigualdade dos cidadãos cuja semelhança decorre de sua identidade pela língua,pela moral e pela religião, excluindo o outro ou o diferente. Ao contrário, oliberalismo introduz a igualdade universal sem discriminação porque éapolítico, uma vez que a política é uma operação de distinções edesigualdades.Pela mediação da democracia, o liberalismo se torna uma política escondida eclandestina, sob a máscara do direito, da justiça, da lei, da verdade, dauniversalidade e da racionalidade. E o marxismo é o equívoco teórico epráticode interpretar a realidade a partir do economicismo que caracterizaintrinsecamente o liberalismo.V.Em 1980, quando se desenvolvia a chamada ?redemocratização?, participei, nosEstados Unidos, de um colóquio sobre o Brasil e mencionei a forte presençadosintelectuais nos debates políticos brasileiros, deixando transparecer minhaapreensão e um certo desconforto pelo fato de que seu discurso sobre asociedade brasileira poderia fazer calar os discursos da sociedadebrasileira.A fala dos intelectuais, dominando o campo da opinião pública, poderiaimpor osilêncio aos outros sujeitos sociais, situação tanto mais grave quando aprática social e política brasileiras passava por uma mutação sem precedentesem decorrência do surgimento de um novo sujeito histórico, os movimentossociais de luta pela criação de direitos, definidores da cidadania.Durante a discussão, uma antropóloga norte-americana me disse: ?Não sepreocupe.Assim que houver democracia no Brasil, os intelectuais deixarão de ter muitaimportância?. Esse comentário poderia ser interpretado de duas maneiras. Numadelas, está presente a idéia de que a democracia, instituindo a igualdade doscidadãos, confere a todos o direito de manifestar-se na esfera pública e departicipar da formação da opinião pública. Na outra, poderia estar presente aexperiência histórica recente dos Estados Unidos, isto é, a forte presençadosintelectuais nos movimentos contra a guerra do Vietnã que, uma vez terminada,os reconduziu ao seu habitat natural, a universidade. Da mesma maneira quenummomento de contestação da ordem vigente os intelectuais norte-americanosocuparam a cena pública, também no Brasil, passada a luta contra a ditadura,eles voltariam ao silêncio de seus trabalhos acadêmicos.Naquela mesma discussão, uma historiadora inglesa perguntou-me se apresença dosintelectuais brasileiros na cena pública não seria influência da culturafrancesa sobre nossa intelligenzia. Minha resposta foi negativa. Voltei-meparaa tradição ibérica, hierárquica e autoritária, na qual os letrados sedistribuíam em três campos: na formulação do poder, como teólogos e juristas;no exercício do poder, como membros da vasta burocracia estatal e dahierarquiauniversitária; e no usufruto dos favores do poder, como bacharéis e poetas deprestígio. No Brasil, essa tradição combinou-se com a percepção da culturacomoornamento e signo de superioridade, reforçando o mandonismo e oautoritarismo, ecomo instrumento de ascenção social, reforçando desigualdades e exclusões; emsuma, o letrado como ideólogo ou intelectual orgânico da classe dominante ecomo detentor de poderes no interior da burocracia estatal. Com astransformações econômicas e sociais do capitalismo no Brasil, isto é, aindustrialização, os intelectuais do contra se tornaram de esquerda e, sob osefeitos do bolchevismo, tenderam a colocar-se como vanguarda esclarecida cujopapel era trazer a consciência de classe às massas proletárias alienadas,desconsiderando a história dos movimentos operários, o anarquismo e osocialismo, as formas de ação e de organização dos trabalhadores brasileiros.Posteriormente, com a implantação da indústria de modelo fordista etayloristaou da ?gerência científica?, com o crescimento da urbanização, osurgimento dasuniversidades e das investigações científicas, a implantação da indústriacultural ou da cultura de massa pelos meios de comunicação e pelapublicidade,a figura tradicional do letrado recebeu um acréscimo, qual seja, a doespecialista, e tornou-se portadora do discurso competente, segundo o qualaqueles que possuem determinados conhecimentos têm o direito natural demandare comandar os demais em todas as esferas da vida social, de sorte que adivisãosocial das classes é sobredeterminada pela divisão entre os especialistascompetentes, que mandam, e os demais, incompetentes, que executam ordens ouaceitam os efeitos das ações dos especialistas.Era essa figura do intelectual brasileiro -- como letrado de prestígio, comoburocrata estatal, como vanguarda política e como especialista competente ? acausa de minha apreensão e de meu desconforto naqueles idos de 1980, poismuitos de nós indagávamos se seríamos capazes de perceber os novos sujeitossociais e políticos e se seriamos capazes de ouvir o discurso do social semsubstitui-lo pelo discurso competente sobre a sociedade e a política. Sobessaperspectiva, poder-se-ia indagar se o silêncio dos intelectuais não seriabenéfico e bem-vindo.No entanto, ainda uma vez, é preciso responder negativamente. Por um lado,porque a figura do letrado-especialista brasileiro simplesmente deslocou-separa os meios de comunicação de massa, que, como a figura anterior dointelectual, impedem a instituição da esfera da opinião pública, impondo suaspróprias opiniões. E, por outro lado, porque o silêncio dos intelectuais nãoteve como origem o fortalecimento da cidadania e da participação, mas amudançana forma de inserção das artes e do saber no modo de produção capitalista e orefluxo do pensamento de esquerda ou da idéia revolucionária deemancipação dogênero humano.Merleau-Ponty escreveu certa vez que todo mundo gosta que o filósofo seja umrevoltado. A revolta agrada porque é sempre bom ouvir que as coisas comoestãovão muito mal. Dito e ouvido isso, a má-consciência se acalma, o silêncio sefaz e toda gente, satisfeita, volta para casa e para seus afazeres. O quadroque aqui tracei poderia parecer um grito de revolta contra o mal. No entanto,como intelectual engajada, quero aqui fazer minhas as palavras desse filósofoquando escreve:O mal não é criado por nós nem pelos outros, nasce do tecido que fiamos entrenós e que nos sufoca. Que nova gente, suficientemente dura, serásuficientemente paciente para refazê-lo verdadeiramente? A conclusão não é arevolta, é a virtù sem qualquer resignação8.
Nenhum comentário:
Postar um comentário